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sexta-feira, 11 de março de 2011

FENOMENOLOGIA E ETC - Nichan Dichtchekenian


A Fenomenologia aponta para a necessidade de se estar permanentemente voltado para o homem como tal e de a Epistemologia ser uma expressão do contato do pesquisador com o homem. Sendo assim, a noção de Ciência muda um pouco. Há, nos últimos anos, uma noção de Ciência uniformizada demais. Confunde-se fazer Ciência com um certo número de procedimentos padronizados. A metodologia consagrada e conhecida dentro das ciências é adequada ao homem em muitos aspectos, mas uma metodologia que diga respeito ao homem (ele mesmo) pode não coincidir com essa noção de que Ciência seja um conjunto de procedimentos padronizado.
A Fenomenologia propõe que pensemos a Ciência em outros moldes, como um procedimento rigoroso e não padronizado, e o rigor diz respeito a uma busca de aproximação entre o procedimento e aquilo que se está pesquisando.
O rigor que a Fenomenologia pede e propõe, como o modo científico do saber, não consiste no abandono do padronizado, do familiar, do confortável, mas na percepção do sentido fundamental que se anuncia no fenômeno. O rigor, portanto, é o enfrentamento do sentido de ser, a partir e além do familiar.
 A FENOMENOLOGIA E A RELAÇÃO HOMEM-SOCIEDADE
Dentro do olhar fenomenológico, o social é uma dimensão originária e fundante do homem. O social não é uma dimensão posterior à constituição do homem como tal, é o momento originário da constituição do homem como homem. Sob o ponto de vista fenomenológico, a estrutura existencial significativa que expressa essa dimensão fundante e constituinte do homem que identificamos como o social é a dimensão do humano enquanto ser com o outro.
Ser com o outro indica primordialmente, uma sensibilidade natural do homem para com o outro que lhe é diferente. Essa sensibilidade coloca o homem, desde o início da sua presença, diante da questão do outro como irredutível a ele mesmo. O outro já lhe é dado como um acontecimento.
Desde o começo de sua presença, porque o outro já lhe é dado como um acontecimento, o homem se encontra frente à questão da relação, que quer dizer impossibilidade de reduzir um termo pelo outro. Por mais que haja movimentos que busquem absorver um termo pelo outro, cada um dos termos se mantém diferenciado do outro.
Então, o social é uma dimensão da existência que é absolutamente inalienável de nós. O social não é da ordem da preocupação ou da despreocupação, do interessante ou do desinteressante. O social está presente em todos os instantes de nossa existência, porque a existência do outro é uma referência permanente até para as minhas questões mais íntimas.
A materialidade da realidade diz respeito à estrutura de valores que orientam e privilegiam os modos de relação, o social, porque relação já quer dizer social. A palavra relação, para a Fenomenologia, só subsiste quando há uma referência clara ao social como tal. Assim, a materialidade estudada permite compreender o modo de ser dos indivíduos.
Além disso, fenomenologicamente, como os indivíduos e grupos articulam os valores sociais herdados e presentes, com suas demandas de relação social? Aí, as referências sociais são: preocupação com os aspectos éticos e de realização de um grupo humano ao qual pertencemos, e que, de algum modo, nos tocam ou nos dizem respeito.
O social não é algo que eu escolho. É preciso levá-lo em conta como uma dimensão absolutamente essencial na constituição da existência das pessoas sejam elas grupos ou indivíduos.
A ESSÊNCIA DO INDIVÍDUO: O HOMEM, O MUNDO E ELE MESMO.
Essência é a sensibilidade que homem tem para responder, de algum modo, ao que lhe vem ao encontro, do social, do mundo e de si mesmo. A essência do homem é sensibilidade para. Isto quer dizer que o que caracteriza o homem como tal, não é nada a não ser sensibilidade para. A essência não é conteúdo. O homem não tem conteúdos, ele acolhe, elabora ou rejeita conteúdos, até faz os outros receberem seus conteúdos, mas o que o caracteriza essencialmente é a sensibilidade para lidar com os conteúdos que lhe vêm ao encontro. Com alguns deles vamos nos familiarizar, nos identificar, muito mais como um movimento de apaziguamento da nossa angústia do que como uma identificação definitiva, porque sabemos que a nossa essência é disponibilidade para.
Mas disponibilidade para o quê? Disponibilidade para ser o espaço onde o sentido de tudo pode se mostrar. O homem é aquele cuja essência é disponibilidade para o sentido de todo o resto poder se mostrar, e é só com o homem como presença que o sentido se mostra. O homem, portanto, é escravo do sentido do mundo, ele está a serviço disto, que é a única coisa que nos resta fazer de específico.
Enquanto o homem vive referido ao mundo apenas no modo de ser da ocupação, ele só se reconhece como aquele que tem esta ou aquela tarefa. Se o estar referido ao mundo diz respeito a algo diferente da ocupação, algo diferente da distração, algo diferente de ter que dar conta do que lhe vem de imediato,se estar referido ao mundo é diferente disto, o homem pode então se reconhecer como aquele que vive a angústia de ter que dar conta de algo que nunca se revela definitivamente.
A noção de essência, durante muito tempo na nossa civilização, foi coincidente com a noção de substância. Mas a palavra essência quer dizer: qual é o modo próprio disto? Porque essência vem de essere, que quer dizer ser, um verbo, e substância é somente um modo substantivo de se compreender essência.
A essência do homem é tal que se mostra de maneira verdadeira e absoluta, mas não definitiva, em cada momento de sua existência. Cada ato meu é absolutamente meu, e isso nos leva à questão do olhar fenomenológico, que é um aprofundamento daquilo que se mostra como se mostra.
Olhar para o profundo é se aprofundar no sentido próprio do que se mostra. O raso não é da coisa, porque ela se mostra como é na sua inteireza. É o nosso olhar que pode ser mais raso ou mais profundo. O olhar profundo é compreender o sentido do que se mostra.
Muitas vezes se confunde esse olhar com eu fazer, metodologicamente, uma enumeração do que vejo ou cair no relativismo. Eu diria que fazer, por exemplo, uma enumeração da frequência do comportamento é possível e diz respeito ao homem, mas diz respeito à dimensão do homem considerado como um sistema previsível, que o homem é também. Ao fazer contagem de frequência de comportamento, estou alcançando o homem na sua dimensão de entidade determinável.
O homem é, nesse aspecto, aquele que, em cada instante da sua vida, vive de uma maneira absolutamente real o que lhe é determinado e que de alguma forma tem que lidar com isso. Como? Ultrapassando a determinação? Não necessariamente. Se pensarmos na questão da Psicologia Hospitalar, na morte, na doença, temos que ultrapassar a doença que é uma dimensão nossa? Talvez ultrapassar a determinação seja, muitas vezes, acolher a minha finitude nessa existência.
FENOMENOLOGIA, DOENÇA E CORPOREIDADE.
Não há maneira mais indubitável de dizermos algo a nosso respeito do que a nossa corporeidade. Na dimensão da doença, sua imagem é a morte, com toda a força que uma imagem tem. Muito mais do que uma metáfora, a doença não é como a morte, a doença é a morte. A doença não é uma metáfora da morte, ela é a presença da morte.
Isso é vivido por nós como imagem, é a nossa finitude de presença e possibilidades.
Clinicamente, a Fenomenologia não busca estimular, no contexto hospitalar, um movimento de superação da questão da doença. Busca escutar e estimular, no doente, um esforço de compreensão e resolução de sua existência a partir da doença. Essa seria a visão e a contribuição, no contexto clínico, da Fenomenologia. É acolher a doença como algo que me diz respeito, não só porque ela me acometeu, mas porque fala de mim, para mim e, a partir disto, eu vou obter novamente uma oportunidade de me colocar resolutamente em relação à minha pessoa. O que é que eu vim fazer aqui com os outros? Essa é a resolução da existência a partir da doença.
Há outro aspecto importante. A doença é também, neste contexto, uma expressão de sanidade. A doença é a expressão não só do impedimento de eu continuar sendo, mas principalmente um impedimento de eu continuar sendo como sempre fui. Ela não é apenas uma ameaça, talvez seja um convite para que se reconsidere as direções que se tem tomado na vida. É uma palavra surda, muda, mas tão intensa que não precisa dizer nada. Ela é a nossa relação conosco mesmos e faz com que nos voltemos para a nossa relação com a vida.
A doença não vem me propor algo. Eu me transformo nesse impedido. É muito radical, é a nossa palavra definitiva para nós mesmos.
Quando nos tornamos doentes, passa a haver um intercâmbio mais enriquecido entre as nossas possibilidades como homem e aquilo que realizamos na instantaneidade de nossa vida.
 FENOMENOLOGIA E DESENVOLVIMENTO HUMANO
Desenvolvimento supõe duas dimensões simultaneamente presentes em nós: a primeira é envolvimento, que é ser de um modo, eu sou deste modo; a outra dimensão é desligamento, viver, experimentar, ser um novo modo de ser.
Desenvolvimento humano é aprofundamento (envolvimento) e ampliação (desligamento) das questões existenciais de cada um. Portanto, para a Fenomenologia, desenvolvimento não quer dizer progresso, desenvolver-se não quer dizer ficar melhor, quer dizer aprofundar-se no modo próprio de ser e conseguir perceber as cruzes e as glórias deste modo de ser.
O outro modo de desenvolvimento humano é amadurecimento e superação de possibilidades existenciais. Com a percepção de que há um movimento de incorporação e transformação no desenvolvimento, o significado de desenvolvimento não pode ser confudido com progresso, melhoria das minhas possibilidades.
FENOMENOLOGIA E DASEIN-ANÁLISE
A palavra chave para essa questão é preocupação, como forma privilegiada do analista na relação de ser com o outro, o analisando.
Nosso trabalho como analistas é amadurecer em nós um modo de ser como pessoas, que tem como qualidade fundamental poder escutar verdadeiramente o outro e poder, nessa escuta, efetivamente estar com o outro, lembrando que cada um de nós tem as referências fundamentais da existência.
As referências fundamentais da existência são: ser e não ser, angústia e culpabilidade, ser no mundo, temporalidade e historicidade, e ainda a transcendência. A Fenomenologia busca iluminar o modo próprio de cada um poder ser e existir como humano, levando em conta essas reflexões.
Angústia quer dizer: sou eu, e somente eu, que vou ter que dar conta de mim mesmo, ninguém mais. Se alguém der conta de mim, o inferno se mostrará na sua expressão máxima.
Culpa ou culpabilidade não é sentimento de culpa. Eu sou aquele que tem que dar conta daquilo que me toca e, se me toca, eu vou responder. Culpabilidade é, portanto, o quanto eu fico em dívida com a minha sensibilidade para com o que se mostra. Culpa, ou culpabilidade, não é ter que dar respostas certas. É o sentimento de não estar dando respostas próprias, de não viver o que é o meu modo de responder.
Temporalidade e historicidade são outras referências. Temporalidade quer dizer o quanto eu consigo estar aqui presente, levando em conta dois aspectos simultaneamente: a finitude e a presença. Eu sou mortal e, portanto, quem eu sou agora é insuperável. Minha presença responde como companheira de minha finitude, conjuga-se com ela. Temporalidade nos remete à existência como ruptura, descontinuidade. Finitude e presença são ecos significativos da natureza instantânea de nossa existência. O instante é o convite irrecusável do meu existir como abertura para o novo e para a não retenção absoluta do já vivido.
Historicidade é a dimensão que revela como eu me aproprio da multiplicidade de instantes a que estou, necessariamente, submetido. É o caminho existencial que eu desenho cujo rosto identificável só se mostra no momento da angústia.
Transcendência é o modo como eu vivo de uma maneira significativa este instante que é tão concreto e direto em mim, isto é, que tipo de simbolização efetiva eu vivo dos instantes de agora. Transcendência é conseguir articular o infinito dos significados com os instantes aos quais nós estamos condenados. Nós não saímos nem dos instantes, nem da possibilidade de ultrapassá-los, através da significação. Transcendência é, portanto, um aprofundamento de sentido do vivido na simplicidade do instante.
A escuta dasein-analítica é uma maneira de você estar com o outro em que você escuta esse outro de uma maneira absolutamente verdadeira, voltada para o modo como ele dá conta destas dimensões. Cada um de nós, em cada ato, está dando conta dessas dimensões, está respondendo a elas. Trata-se de acompanhar como a pessoa está acolhendo estas determinações. Ela as aceita ou as rejeita? Ela realiza algum movimento em que a articulação, pertencimento e autonomia estão presentes? Estas são as faces, os modos de articular essas dimensões que nos caracterizam.
Sugiro, como olhar fenomenológico, que prestemos atenção aos simples e medíocres instantes em que somos. Eu nada serei se não pertencer a algo, e nada serei se não viver o eu mesmo. Como lidar com isso? Sendo eu mesmo no interior da familiaridade, eu mesmo no interior do já eternamente dado. Como é isto? Isto não pode ter uma resposta antecipada. É uma questão que vem ao nosso encontro e na análise vamos acompanhar o movimento de cada um e, ao fazê-lo de uma maneira íntima e próxima, estaremos oferecendo ao analisando a possibilidade dele, assegurado de si a partir do já vivido, poder se lançar, na maior proximidade possível de si mesmo, para um instante original e próprio.
Compreender o homem é compreender cada um como uma expressão absolutamente original, irrepetível, de ser homem. Essa compreensão é necessária, mas não é suficiente. Além dela, é necessário acompanhar a particularidade histórica, factual da existência de cada um de nós. Porque no interior desta facticidade é que está sendo realizada a existência de cada um.
Na escuta dasein-analítica, não se trata de levar a pessoa a grandes significações gerais a respeito do homem, mas de viver significações no interior da simplicidade e factualidade da sua vida. A compreensão é um movimento absolutamente necessário para o nosso trabalho e é, no interior da existência concreta e simples de cada um, que ela vai poder ter uma repercussão, uma ressonância com consistência.
FENOMENOLOGIA- EXISTENCIAL E TEMPO DA SESSÃO. O AMOR COMO METÁFORA.
Capte a seguinte imagem: "eu amo tanto você que viveria eternamente ao seu lado". Isto é uma imagem, uma mentira factual, absoluta impossibilidade. O amor não é dissolução de si mesmo, ele é a promoção de si mesmo com o outro.
Se o analista vive um “amor” pelo seu analisando, e amor aqui quer dizer disponibilidade para aprofundar-se com o analisando naquilo que ele busca, ele é um companheiro do analisando nessa busca.
Assim, há um tempo de cinquenta minutos, uma hora, uma hora e meia, duas horas, não importa, mas o tempo de encontro está dizendo que a minha disponibilidade é eterna com você enquanto estou com você, Eu tenho outras urgências como pessoa e estas têm sua devida importância, mas não substitui a importância do que vivo com você. Eu “amo” você, com certeza, de modo que é o amor-disponibilidade que quer encantar-se com o seu jeito de ser. Amar é isso, encantar-se com a forma singular do outro ser.
O amor não é apenas um sentimento que me abre para o absolutamente original do outro, mas faz o outro descobrir o divino que ele é. Quem ama faz o outro perceber algo que ele nunca tinha percebido nele. É uma doação magnífica. E a nossa relação é mantida, sustentada por esse tipo de presença, um para o outro.
A natureza de nossa presença é uma proposta de relação que o outro vai responder como der, puder, quiser. O tempo é uma expressão claríssima da nossa existência uns com os outros: tanto o meu amor por você está presente, como este amor não é a única dimensão com a qual eu sou na vida.
E eu diria que esta expressão do amor na relação do trabalho analítico não é uma particularidade restritiva do amar, é o amar na busca de sua maior purificação. Os nossos outros modos de amar uns aos outros é que ainda podem se confundir com necessidades. Não estou dizendo que no amar não há necessidades, mas não se resume a isto. O amar tem a simplicidade da graça, é de graça, amar é promover.
Então, na sessão impera, além do tempo, disponibilidade e encantamento que quer dizer interesse genuíno no projeto do outro, em suas buscas e no outro como ele singularmente é.
A metáfora do amor é pertinente, já que ao amar e estar com quem se ama o tempo perde sua força cronológica e assume uma força ilógica que tem sua potência na intensidade do tempo e não na sua extensão cronológica.
Organizar cada atendimento com 50 minutos ou outro número, é importante senão a gente se perde, mas o fundamental é que seja um tempo de real disponibilidade e encantamento.
 FENOMENOLOGIA-EXISTENCIAL E NOSOGRAFIA
Se todos os homens são modos de ser, há uma possibilidade de estabelecer uma fronteira entre sanidade e doença? Se todos os modos de ser do homem são legítimos, e disto a Fenomenologia não abre mão jamais, como é possível estabelecer uma fronteira entre sanidade e doença? Se todos os homens são modos de ser, a Fenomenologia está considerando a doença como expressão direta da condição existencial. Mais do que distinguir a doença da não-doença, aproxima a doença da existência. Doença não é negação da existência, é uma possibilidade da existência.
Não se trata de estabelecer uma nova classificação nosológica. Trata-se de compreender o nosológico.
O único nosológico fundamental de todos nós é a esquizofrenia. O resto são variações. A esquizofrenia é a expressão direta da condição humana. Não é negação, é expressão. Compreendemos esquizofrenia como uma luta sem pele, em carne viva, entre ser e não ser. Viver a esquizofrenia é uma escolha em nós? Com certeza, não. Ela vem ao nosso encontro quando algo que é tão simples e tão fundamental nos falta. O que faltaria a nós e que poderia fundamentar o nosso modo de ser esquizofrênico? Faltaria o outro. Como acontece? Quando aquelas pessoas que lhe dizem respeito em diferentes momentos da vida – podem ser os pais num certo momento, mas não necessariamente o são – estas pessoas não sabem o que fazer com a criança que veio. Têm simultaneamente, no mesmo gesto, rejeição e acolhimento, ódio e amor. O problema do esquizofrênico, que é o nosso problema como homens, não é viver ser o rejeitado. Na vivência esquizofrênica eu cheguei e ninguém efetivamente me percebeu nem me acolheu como eu sou. Não pude ter oportunidade de ocupar um lugar nesse mundo.
Na esquizofrenia eu vivo a angústia carnal de jamais saber quem eu sou e qual é o meu lugar no mundo. Mesmo que seja o dos malditos, eu, sendo maldito, ainda tenho um lugar. Mas a esquizofrenia é a absoluta incerteza. A vivência esquizofrênica é a plena explosão da angústia de ter que ser sem poder ser. Todos nós vivemos grandes mentiras afetivas na nossa vida, mas a estrutura de história da relação de todos nós aqui não é a esquizofrenogênica, não tem esse modo no qual a ambivalência é o que predomina na relação.
É necessário compreender a esquizofrenia como uma possibilidade dos homens, de todos nós, em relação à qual o que estamos vivendo enquanto doença é, simultaneamente, um chamado às nossas possibilidades e uma limitação da nossa existência, um incômodo de continuar sendo como sou. Por exemplo, o modo obsessivo-compulsivo de ser pode ser considerado um aspecto nosológico? Pode, mas ao mesmo tempo pode ser visto como o único modo que aquela pessoa encontrou de incluir a ordem na absoluta vitalidade da vida. O obsessivo-compulsivo vive, com a maior intensidade possível, a explosão da vida. Por isso ele é tão certinho: se ele relaxar um instante, ele se desorganiza.
O obsessivo-compulsivo é aquele que lida com a questão da organização de um lado, e a explosão de outro, como dois aspectos que ainda não puderam entrar em harmonia. Ele só pode lidar com isso de uma maneira antecipadamente preventiva, para tentar conter a vitalidade da sua existência.
FENOMENOLOGIA, TRANSFERÊNCIA, CONVERSÃO E PROJEÇÃO 
A Fenomenologia não considera os conceitos psicanalíticos como contestáveis. Afirma, aliás: a conceituação psicanalítica é absolutamente fidedigna ao que o homem vive. Não se trata, portanto, de contrapor à conceituação psicanalítica um outro conjunto de conceeitos que abarcaria melhor o que vive o homem. Os conceitos psicanalíticos como transferência, conversão e projeção são expressões, cada um deles, de dimensões existenciais.
A transferência, num olhar fenomenológico, é o modo pelo qual eu vivo a relação ser-com-o-outro. Ele é verdadeira? Com certeza. Chama-se transferência porque é mais uma ocasião de eu viver a minha concretude como pessoa para alguém. Eu quero ser real para alguém, e eu vivo isso no meu modo próprio de ser, que não é aquele ajustado, já confortavelmente instalado nas demandas sociais. São os meus problemas, as minhas faltas, os meus ódios, as minhas raivas, as minhas tristezas e as minhas saudades. Eu vivo o meu modo próprio de ser na especificidade desses sentimentos.
Então, transferência não é uma demanda equivocada, é um "pelo amor de Deus, olhe para mim". Nesse sentido, a transferência é um conceito que nasceu na Psicanálise e que tem a sutileza de perceber a importância, no contexto do trabalho, da relação transferencial. Porque já não se trata mais de um cliente, mas de você, que está aqui comigo como você mesmo.
A resposta do analista para a demanda que o analisando leva até ele não é corresponder como complemento, é compreender a legitimidade da sua demanda. Essa é a articulação que a Fenomenologia e a Psicanálise podem ter: a legitimidade da identificação do conceito e uma compreensão deste conceito como uma modalidade de realização da dimensão existencial.
Assim também a conversão para a corporeidade, para aquilo que se chama de sintoma. O que é isso, sob o ponto de vista fenomenológico-existencial? É a objetivação, no seu sentido mais puro, porque não há nada mais próximo e mais distante de mim do que o meu corpo. Ele fala sendo, ele não dialoga comigo, ele não responde a mim. Quando sou de um modo, ele expressa esse meu poder ser, meu modo de ser, do modo próprio dele.
Conversão diz respeito, para a Fenomenologia, a uma objetivação da nossa existência. O grau de complexidade de uma conversão equivale a eu poder falar com uma montanha. É difícil, eu preciso entrar no espírito da montanha, do corpo, do fígado, das pernas. Não é fazer grandes aprofundamentos, é compreender aquilo que se mostra: estou doente das pernas, não consigo andar. Quero andar e não consigo. O que o andar mostra diretamente? Andar é abandonar. Mas o que é o abandonar, o tchau, o adeus? É o ir, sair da eternidade do lugar e do instante. Para ter um olhar para isso é preciso olhar para o andar no sentido próprio dele.
Isso não é uma interpretação para além daquilo que o andar mostra. Existe uma briga entre Fenomenologia e não-Fenomenologia: "A Fenomenologia não interpreta." "Como não Quando você fala, isso não é uma interpretação?" Eu respondo: não, não é. Se interpretar é substituir uma coisa por outra, não é. Falar que o andar é abandono é falar do andar ele mesmo.
Falta agora a projeção. O que quer dizer a projeção, fenomenologicamente? Projeção é a expressão direta do que é meu e do qual eu ainda não tomei posse, mas que está amadurecendo em mim. Eu me vivo nos outros. É por isso que eu projeto algumas coisas e outras não, vivo a projeção de algumas coisas e de outras não. O amadurecimento de possibilidades minhas ainda não pôde ser vivido em mim como dizendo respeito a mim.
Como analista, eu convido o paciente a perceber em si aquilo que ele aponta em mim, ou aponta nos outros ou nas coisas. Para terminar, quero indicar a absoluta necessidade de parceria da Fenomenologia com a Psicologia.
A Fenomenologia compreende a Psicologia como uma ciência que precisa ter a existência como permanente referência, sem a qual ela se transforma num mero jogo de curiosidades conceituais.
A Fenomenologia convida a uma articulação aberta, expressa entre a dimensão essencial e a dimensão factual a todo o momento. Ela articula o ôntico e o ontológico, permanentemente presentes.
O ôntico é aquilo que se mostra como se mostra, numa certa forma. O ontológico é o sentido disto que se mostra. O ontológico está aqui, sempre está no ôntico. O ontológico não é uma outra realidade. É o sentido daquilo que se mostra.

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