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sábado, 25 de setembro de 2010

COMPULSÃO A DROGAS - UMA VISÃO EXISTENCIAL

Walmir dos Santos Monteiro[i]
Universidade Severino Sombra/Vassouras-RJ
Pró-Reitoria de Pesquisa e Pós-Graduação
monteiro.walmir@gmail.com

RESUMO:  Neste artigo examinamos a questão da drogadicção à luz  das dimensões da existência, segundo o fundamento  fenomenologico-existencial. O dependente químico estigmatizado e estereotipado como tem sido, comumente sofre com informações parciais e tendenciosas acerca de sua conduta e também é atingido por generalizações, faltando por parte da sociedade a devida atenção a aspectos fundamentais que envolvem variáveis sociais, econômicas, políticas e culturais, basilares à compreensão do fenômeno drogas.   Aqui não nos detemos nessas variáveis, mas apresentamos a singularidade da visão existencial sobre a dependência química que seguramente serve como ponto de partida a uma análise mais profunda do tema.
INTRODUÇÃO
Relembremos que a filosofia existencial fundamenta-se em quatro concepções básicas:
 1) Uma ação é, por princípio, intencional; 2) A existência precede e comanda a essência; 3) Ser é fazer, ser é agir. Deixar de agir é deixar de ser.  4) Toda consciência é consciência de alguma coisa.
 A modernidade foi construída e desenvolvida a partir da  racionalidade grega e nossos modos de pensar e agir têm sido  moldados por ela. A idéia de “conteúdos de consciência”, de
 “interioridade da consciência” é uma delas.
 Mas Sartre desafia o pensamento Aristotélico e propõe uma nova maneira de   encarar a realidade.  Diz ele: "As aparições que manifestam o Existente não são  interiores nem exteriores. A aparência não esconde a essência,  mas a revela: ela é a essência”. Para Sartre, então,tudo está no  ato, na escolha.
 A visão de homem no existencialismo é a de alguém  existindo sempre em movimento, agindo e sofrendo ações,  desgastando e sendo desgastado pelo processo de existir.
 Existir sugere ser-para-fora (ex-sistere), ser-no-mundo. E esse movimento, esse desgaste, pode ser analisado consoante à  consciência que persegue sempre e incansavelmente integração,  consistência e coerência entre várias tendências, emoções,  sentimentos e atitudes.
Talvez, paradoxalmente, o movimento compulsivo em direção às drogas seja uma tentativa de “existir”, de “sair para fora”, de transcender. Mas digo paradoxal porque é um movimento que trava querendo liberar, que retroce querendo avançar. A droga é o paradoxo daquele que aspirando libertação, encontra-se com a escravidão. Porque  as compulsões em geral operam a perda das rédeas da própria vida, resultando em uma certa “escravidão do hábito”.
EXISTENCIALISMO E DROGADICÇÃO
Diante do paciente drogadicto a existencial utiliza o  conceito organísmico que diz que doença não é somente  desequilíbrio ou desarmonia, mas sobretudo o esforço que a  realidade humana exerce para obter um novo equilíbrio. O sujeito  pode "escolher" a drogadicção para curar a si próprio, para  alcançar um estado de equalização organísmica, o bem-estar do
 seu ser-no-mundo.
 É um modo de captar o verdadeiro projeto de viver do  paciente, a maneira de existir de uma certa pessoa, não se  podendo extrair dessa análise um conjunto de avatares clínicos
 que venham a ser aplicados a outra pessoa, pois não é possível  imaginar uma entidade chamada "pessoa" sem situá-la no mundo;  e situar no mundo evoca "ação".
 É um método de investigação onde colocamos entre  parênteses todo o conhecimento acerca do fenômeno e o  visamos como ele é em si mesmo. A proposta da fenomenologia é
 uma volta "às coisas mesmas" como diria Husserl. E essa volta  preza a valorização do manifesto, aquilo que aparece e não o que  parece.
 Porque o que parece é um exercício intuitivo e  interpretativo da nossa consciência, um exercício noésico. Sartre  diz que "a redução fenomenológica de Husserl propõe reduzir o
 mundo ao estado de correlato noemático da consciência“.
 Portanto, a fenomenologia é um método que faz mediação entre o  sujeito e o objeto, entre o eu e a coisa.
 Na fenomenologia, o conhecimento se dá na relação  noesis-noema, duas expressões gregas que significam:
 Noesis: ato da consciência, disposição do sujeito para ver  algo, modo de perceber e conhecer alguém.   Noema: se mostra como o mundo que se dá a conhecer, o  vivido, o experienciado.
  Então, ou o indivíduo atribui significado através de algo  que emerge intencionalmente à sua consciência ou busca o  conhecimento  no mundo que se mostra ou se deixa mostrar para ele. São,  portanto, duas expressões husserlianas que definem dois pólos no  processo de conhecimento ou investigação do fenômeno.
 Quando Husserl trata da redução fenomenológica ressalta  a necessidade de se colocar entre parênteses todo o conhecimento  prévio acerca do fenômeno, ou: pôr em suspensão toda a noesis  acerca do fenômeno, e somente recorrer ao que é noesis, se  necessário,após.
 Quer dizer: criar uma época para noesis após examinar  longamente o fenômeno tal como ele se mostra.
NOESIS.......................................NOEMA
SUJEITO.....................................OBJETO
CONSCIÊNCIA............................FENÔMENO
EU................................................TU
 A tese de Sartre é a diferença entre o mundo das coisas "o  ser", e a consciência "o nada”. O ser é resistente, opaco, viscoso,  ele é o "em si”,a objetividade nua e bruta. O nada, ao contrário é a  consciência, que é insubstancial, pura atividade e espontaneidade,
 é o "para si“.
 A consciência somente é consciência quando consciência  de alguma coisa, ou seja, a consciência não tem existência  própria, ela não é um recipiente que armazena coisas, e só existirá  quando houver intencionalidade, porque a consciência é um  movimento e não algo concreto como na tradição cartesiana.
 O EU (ego) só existe no homem (consciência para-si)  quando ele se move em direção aos objetos. Transcender quer  dizer movimentar-se. Esse movimento egóico faz com que o
 indivíduo viva enquanto ser para-si. E esse ego só se revelaria  essência enquanto ausência de transcendência e intencionalidade.
 Não devemos confundir a abordagem de consciência feita  neste trabalho com a consciência enquanto função psíquica, alvo  inclusive de avaliações neuropsiquiátricas que investigam, entre  outras coisas, a capacidade de o paciente captar o ambiente e  orientar-se de forma lúcida e adequada. A consciência,  considerada assim, é um processo de coordenação e síntese da  atividade psíquica, o todo momentâneo que possibilita que se  tome conhecimento da realidade naquele instante.
 É uma função a partir da qual estabelecemos contato com  a realidade e tomamos conhecimento direto e imediato dos  fenômenos que nos cercam. E é claro que a dependência química  prejudica profundamente essa função, inclusive com destruição  gradativa das células nervosas.
 O para-si é o ser consciente e transcendente, nele não há  essência pois é um eterno incompleto que se completa e se  descompleta continuamente. Nunca está pronto.
 Já a criança é considerada um ser-em-si que evolui ao para-si, pois a consciência da criança, estando em formação, transita  entre o em-si e o para-si. Por exemplo, aos quatro meses de vida,  aos dois anos e depois aos quatro anos, encontram-se em  diferentes estágios do “em-si”.
 Em relação ao para-si a consciência é tida como um  “nada”, em função de não haver interioridade (conteúdo) na  consciência.  O para-si e o em-si acham-se reunidos em uma conexão  sintética que nada mais é do que o próprio para-si.  Com efeito, o para-si não constitui senão a pura  nadificação do em-si; é como um buraco de ser no âmago do Ser.
 Portanto, o homem busca o “em-si” mas não o alcança.
 A droga às vezes surge como tentativa de suprimento dessa  impossibilidade de essência. A falta de essência do para-si  significa falta de certezas e excesso de ansiedade. A ansiedade da  falta.  Assim, há pessoas que vivem a ilusão de que possuem tudo  e que nada lhes falta. Todavia, sendo a falta algo existencial e  imanente, quando dela se tem consciência, no lugar de  possibilidade se torna desespero.
 A fama, por exemplo, pode criar graves problemas  existenciais, porque o “ter” remete ao em-si, mundo das coisas, e  nelas o para-si jamais encontrará completude, uma vez que a relação
 com as coisas não cria – em si - correspondência de consciência. Então o  simples fato de se possuir coisas, ou fama, não pode criar sentido  à existência.
 Entre os temas humanos o amor é um dos mais densos e  complicados,e também nossa maior necessidade existencial:  Receber e dar amor.
 Por causa de tanta densidade, a psicologia existencial foca  o amor com interesse e intensidade.  Sabemos que o amor do para-si é complexo porque amar é  dar, mas ainda que entendamos assim nem sempre queremos dar  o que o outro espera, mas sim o que precisamos dar, ou o que  entendemos que o outro deva receber. O amor é complexo porque
 entendo o meu dar também como uma forma de receber. Às vezes  fantasio que o outro precisa ser como sou, e esperar o que espero e  desejar o que desejo.
 Muitas vezes pensamos que a prova do amor do outro é  tornar-se como sou, ser uma extensão de mim, mesmo que deixe  de ser ele mesmo. Acaba que o ápice do amor torna-se o fato de  eu receber do outro o que preciso receber enquanto dou o que  preciso dar. É complexo, é a ação do para-si, um ser que é o que  não é. Já o em-si é o que é. E jamais deixará de sê-lo. 
São  considerações iniciais necessárias à compreensão da dinâmica  ontológico e funcional dos sentimentos do ser quando se encontra  no nível para-si, quando entra nessa condição impossível de  permanecer, e quando retorna ao para-si que é a condição  ontológica genuína do ser da consciência.
 A pergunta que não quer calar é: se minhas escolhas são  intencionais, se meus atos são atos de liberdade, onde ficam as  ações e reações condizentes com a situação de trauma? Não
 existem traumas?
 O trauma é um acontecimento intenso na vida de um  sujeito incapaz de reagir a esse acontecimento de forma adequada.  Trata-se de um excessivo afluxo de excitações que o sujeito  não é capaz de tolerar e elaborar psiquicamente".  Pois bem, essa incapacidade aludida no conceito se desfaz  com a maturidade. Se por algum motivo (e aqui não importa o
 motivo uma vez que não investigamos causalidade) não  amadureço, tento o tempo todo permanecer na condição em-si. E  aí o que importa não é o trauma mas a permanência na condição  em-si de um ser para-si. Isto pode ser má-fé, mas também pode ser  uma patologia.
 Se a terapia, acompanhada ou não de um tratamento  medicamentoso for capaz de desfazer o trauma ou as  conseqüências comportamentais do trauma é porque operou na  esfera da escolha. Se nenhum tratamento for capaz disso, estamos  diante de um ser em-si e o trauma nessa investigação já não mais  importa.
 DROGADICÇÃO: EXPLICAR OU COMPREENDER?
 Por mais que se tente explicar a causa da drogadicção em  um sujeito sempre ficará faltando a questão do sentido, ou seja, a  questão eminentemente humana. E sentido e significado não se  explicam, podemos apenas tentar compreendê-los. Assim, o  evento psicológico não pode ser explicado, apenas compreendido,  pois teria um caráter de singularidade e sentido que não é captado  por qualquer tipo de tentativa explicativo-experimental. Dilthey  enfatiza sua crítica do caráter mutilador da abordagem  explicativa, que perde o que os fenômenos humanos têm de  específico, seu significado.
 O processo de análise existencial do sujeito drogadicto não  visa explicar a drogadicção, mas compreender o sujeito que faz da  drogadicção o seu modo de existir. Explicar seria tentar descobrir  de onde a drogadicção veio, compreender é tentar saber para onde  ela vai. Compreender é investigar o "sentido" da drogadicção, ou  seja, que papel ela ocupa na existência desse sujeito. Focando a  pessoa e não a patologia.
 Enfim, para que me “anestesio”? para estar drogado? Para  me dar essa aventura? Quero estar aventureiro ao preço da minha  Própria saúde e vida? Sim, escolho a via da aventura arriscando a  minha vida. Então, que sentido (valor) dou à minha existência já
 que dela não cuido, a ela não preservo, e provavelmente não a  amo?
 São perguntas que certamente nos ajudam a compreender uma  existência com drogas.
 Fundamental, para concluirmos a visão fenomenologico- existencial da drogadicção que entendamos um dos sentidos do  conceito “ipseidade”, porque quando o sujeito usa drogas ou faz  qualquer outra coisa, ele lança mão do seu potencial de  consciência intencional e se move em busca do preenchimento de  uma falta. E a ipseidade designa a singularidade da coisa
 individual.
 Explicando melhor: o para-si é integralmente ipseidade  naquilo que determina o homem como não sendo o que é e sendo  o que não é. Ou seja, não sou o que sou porque sou o meu
 projeto, e ao mesmo tempo sou o que não sou porque sou o meu  projeto. Esta é a ipseidade (singularidade) do ser.
 O circuito de ipseidade se explica assim: O EU é um em-si  com o qual a consciência se relaciona. O EU é JE e MOI. Je, na  condição pré-reflexiva e Moi na condição reflexiva. Porque o Ego  (em-si) (Je) é anterior à transcendência e O Ego (para-si) (Moi) é  transcendente.
 Uma vez lançado ao mundo, o homem transcende, se  movimenta, faz vicejar sua existência consciente e intencional,  enquanto para-si . E esse movimento existencial é fundamentado
 em liberdade,     responsabilidade e consciência de  intersubjetividade, propiciando que o homem escolha o seu  próprio caminho e cresça com suas próprias experiências,  assumindo a responsabilidade diante das consequências das suas  próprias escolhas.
 Consciência de intersubjetividade porque o homem é um  ser-no-mundo, e se por um lado somos livres, por outro não  vivemos sem o mundo das coisas, das pessoas, das leis e das
 relações às quais estamos atrelados.
 CONCLUSÃO
 Na visão existencial certas tendências como piedade,  moralismo e paternalismo são desestimuladas uma vez que  entendemos que cada pessoa tem o seu tempo, o seu jeito, o seu  caminho. E ninguém pode ser modelo existencial para o outro.
 Usar drogas, mesmo como ação de liberdade e  subjetividade, deve levar em conta o interesse social. À medida  que esta prática gera risco social, tal comportamento deixa de ser
 uma ação de responsabilidade exclusivamente individual.  Mesmo o drogadicto tem a responsabilidade de pensar e  repensar suas escolhas. Criticá-las. Talvez a terapia existencial na  drogadicção tenha como principal papel ajudar o indivíduo a  pensar criticamente suas escolhas e ações. 
 Às vezes pensamos o dependente químico como alguém incapaz de avaliar,    criticar suas escolhas e se  responsabilizar por elas. Consideramos que se ele deseja afundar- se nas drogas, isto é uma escolha. Pode ser desagradável,  podemos discordar, desaconselhar, mas é uma escolha subjetiva e  ele precisa responsabilizar-se e ser responsabilizado por ela. Se o
 drogar-se é uma tentativa de entrar na condição em-si, se  tratarmos o dependente químico como um ser-em-si, e isto  fazemos dando proteção excessiva e consertando o tempo todo os
 erros dele, o que estamos fazendo é fortalecer essa atitude de  irresponsabilidade e má-fé.
 E tal atitude, além de atrasar sua recuperação, é em si  mesma inútil. Temos por certo que muitas vezes conseguimos  defender uma pessoa de outras pessoas, mas dificilmente
 conseguimos proteger uma pessoa dela mesma, já que nem sempre é possível impedir que uma pessoa faça mal a si própria.
 Então precisamos aprender a respeitar a subjetividade permitindo que as pessoas escolham com liberdade, se responsabilizem por suas escolhas e cresçam com suas próprias experiências.
 Sartre disse que “são os nossos atos que nos definem. Nós  mesmos desenhamos nosso próprio retrato e não há nada além desse retrato. Nossas ilusões e imaginações a nosso próprio  respeito e sobre o que poderíamos ter sido são decepções auto- infligidas acerca do que não quisemos fazer dentro das nossas  possibilidades, que não são poucas”.
 Nossa identidade é formada, reformada, transformada ao longo da nossa existência. Quem sou é uma pergunta que respondo todos os dias. Hoje a droga pode ser base de identidade
 e identificação de uma pessoa, mas amanhã pode não ser mais.
 O conceito de liberdade fundamenta a visão fenomenologico-existencial da drogadicção, lembrando que “não há liberdade sem responsabilidade”, já que o homem é homem
 por sua condição de ser livre. E se constitui afirmando suas  escolhas livres. É produto de sua liberdade, pois na ação livre ele escolhe seu ser e se constrói enquanto sujeito.
 Assim, toda ação, escolha ou objetivo de vida, são produtos da Liberdade,que deixa de ser uma conquista humana,  para, ser uma condição da existência humana, como já vimos anteriormente. 
Fortalecemos o drogadicto acentuando  sua responsabilidade e não sua dependência, porque nunca uma tempestade parou por causa de uma rosa frágil.
E uma importante sinalização da psicologia existencial é que mais do “livres de”, somos “livres para”. E isto significa que o melhor sentido de liberdade é LIBERTAÇÃO. Lembrando que o
 contrário da dependência não é a abstinência e sim a liberdade.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
HUSSERL, Edmund. Idéias para uma fenomenologia pura e para uma filosofia fenomenológica. Aparecida, SP: Idéias & Letras, 2006.
SARTRE, Jean-Paul. O ser e o nada. Petrópolis: Vozes, 1999.
MONTEIRO, Walmir. O tratamento psicossocial das dependências. Belo Horizonte: UNI-BH, Editora Milênio, 2000.



[i] Psicólogo; Professor da Universidade Severino Sombra; Mestre em História Social; Supervisor Pedagógico da Pós-Graduação Lato Sensu em Dependencia Química e Transtornos Compulsivos – USS. Autor de “O tratamento psicossocial das dependências” (UNI-BH).