**Georges
Daniel Janja Bloc Boris
1.
Psicanálise. Fritz foi psicanalista durante várias décadas. Após
algum tempo na África do Sul, participa do Congresso Internacional de
Psicanálise, em 1936, na Tchecoslováquia, onde apresenta o trabalho
“Resistências Orais” (mal recebido) e se decepciona com Freud e Reich. Em 1942,
em Durban, publica “Ego, Hunger and Aggression:
A Revision of Freud’s Theory and Method” (subtítulo apenas suprimido em 1969,
na edição americana,
o que revela sua inclusão no seio da psicanálise). Nesta obra, destaca a importância da ingestão de alimento físico e
mental e sua assimilação (fome); esboça uma teoria do desenvolvimento a partir
da agressão oral; enfatiza a importância do tempo presente e as questões das
polaridades, do corpo e da síntese de novas experiências; trata da integração
entre a vida pessoal e profissional do psicoterapeuta, pela qual batalhou
sempre; destaca a necessidade conhecimento sobre semântica; propõe uma terapia
de concentração (Shepard, 1977).
Destaque-se que esta
obra ainda não foi publicada, por razões obscuras, em português, mas que se
trata de um texto fundamental para a compreensão do que vem a ser a
gestalt-terapia, sendo um dos escritos mais consistentes de Fritz. Goste de
destacar a necessidade de revisão de nossos vínculos e de nossa diferenciação
com a psicanálise, por exemplo, quanto à questão da transferência.
2. Pensamento Diferencial (Dialético) e Filosofia
Oriental. Nos anos 20, Fritz
entra em contato com o filósofo Friedländer, em Berlim, e com sua teoria da
‘indiferença criativa’, que se assemelha ao taoísmo. Esta teoria afirma que
“cada evento está relacionado a um ponto-zero, a partir do qual uma
diferenciação em opostos ocorre. Estes opostos apresentam em seu
contexto específico uma grande afinidade entre si. Permanecendo alertas no
centro, podemos obter uma habilidade criativa de ver ambos os lados de uma
ocorrência e completar uma metade incompleta” (Perls, 1969, p. 15). Esta
influência vai se manifestar no nosso trabalho com as polaridades. Portanto,
são necessárias uma revisão de nossa metodologia psicoterápica e uma melhor
compreensão das práticas orientais.
3. Holismo, Teoria Organísmica e Psicologia da Gestalt. Por volta de 1926, Fritz entra em contato com a psicologia da gestalt, através de sua futura mulher, Lore
Posner (depois, Laura Perls), e com a teoria organísmica, de Kurt Goldstein. Em
sua autobiografia (Perls, 1979), Fritz reconhece sua pouca profundidade sobre a
psicologia da gestalt, admitindo sua maior ênfase à diferenciação figura-fundo
e à idéia de situação inacabada. Sua maior relação se dá com a teoria
organísmica, cuja “premissa é que é a organização de fatos, percepções,
comportamentos ou fenômenos, e não os aspectos individuais de que são
compostos, que os define e lhes dá significado específico e particular” (Perls,
1977, p. 18).
Em 1951, nos EUA, Fritz publica, com
Hefferline e Goodman, e a ajuda de Laura, aquela que é considerada a ‘bíblia’
da gestalt-terapia, “Gestalt Therapy: Excitement and Growth in the Human
Personality”, também não publicada em português. (Pode-se perguntar porque as
obras mais importantes e consistentes de Fritz não são publicadas no Brasil).
Os limites de Fritz e a publicação desta obra vão se refletir na sua prática
grupal, nos anos 50 e 60: uma psicoterapia individual pelo (centrada no
psicoterapeuta) grupo. Fritz parecia fazer um trabalho não compreensivo
das potencialidades psicoterápicas do grupo. Nos anos 70
e 80, alguns seguidores de Fritz (Feder & RonalI [orgs.], 1980) passam a
trabalhar com os níveis intrapessoal, interpessoal e grupal (e não apenas o
nível individual, como fazia Fritz) e a elaborar teórica e praticamente as
regularidades e fases grupais (dependência, contra-dependência e interdependência).
Assim, acredito ser
necessária uma melhor compreensão dos fenômenos e processos grupais, sugerindo
a concepção dos grupos como comunidades cooperativas vivenciais (além dos
aspectos psicoterápicos).
4. Fenomenologia e Existencialismo.
a) Fenomenologia. Esta proporciona a metodologia básica de todas as abordagens
existenciais. Fritz, infelizmente, em 1946, vai para os EUA e enfatiza a
divulgação da gestalt-terapia como criação sua e negligencia teoricamente as
raízes metodológicas da mesma.
. Brentano (1838-1917). Mestre de Husserl e
precursor da fenomenologia, propõe um empirismo diferente do empirismo inglês
(que observa vários fatos e abstrai e generaliza as notas comuns): toma “um
único caso” e busca ver o que nele é essencial (em que consiste, sem o qual não
é), obtendo a essência do fenômeno. Isto se manifesta na gestalt-terapia quando
ficamos com o que está, com a pessoa que temos à nossa frente e não com a sua
classificação, a partir de uma generalização. O nome de Brentano também está
associado à psicologia do ato (ou processual), em oposição ao estruturalismo
(psicologia dos conteúdos): a psicologia deve estudar os atos ou processos
mentais (psíquicos) da pessoa e não os conteúdos ou objetos (físicos). Isto se
manifesta na gestalt-terapia na preponderância do como sobre o porquê. Brentano
trata da intencionalidade dos fenômenos psíquicos, num prenúncio da
fenomenologia, desenvolvida por Husserl.
. Husserl (1859-1938). Matemático, Husserl
aproxima-se da filosofia através de Brentano. Em sua época, Marx, Freud e
Nietzsche ainda não tinham a força que viriam a ter. A filosofia se volta para
as ciências positivas, as matemáticas, enfatizando a objetividade e abandonando
na especulação e a intuição. A psicologia tentava ser uma ciência exata, adotando
o método das ciências naturais, eliminando a subjetividade e a intuição.
Husserl
critica a psicologia da época por adotar esta metodologia sem perceber que seu
objeto é diferente. Diz que temos um acesso indireto à natureza (objeto das
ciências naturais), a partir de fatos hipotéticos, que permitem uma
reconstrução e, portanto, uma explicação, isto é, a criação de leis e causas. A
vida psíquica, por sua vez, é um dado imediato, ao qual temos acesso apenas
através da descrição, permitindo a compreensão do fenômeno ou do processo. A partir disso, propõe uma Fenomenologia que reúna os dados da
experiência em sua totalidade (fenômeno) e o pensamento racional (logos).
Ora, os
fenômenos nos são dados pelos nossos sentidos, mas estes são dotados de um
sentido ou essência. Para tanto, Husserl propõe uma
intuição originária, da essência ou dos sentidos, ou “retorno às coisas
mesmas”, que define como “a visão do sentido ideal que atribuímos ao fato
materialmente percebido e que nos permite identificá-lo”. Isto se revela na
gestalt-terapia através de uma atitude não interpretativa, na busca do sentido
do fenômeno pelo cliente, através de sua identificação e assimilação das partes
alienadas, por exemplo, no trabalho com sonhos e fantasias.
Husserl
propõe, também, o principio da intencionalidade: a consciência é sempre
“consciência de alguma coisa”, estando “dirigida para” um objeto, que é sempre
“objeto para um sujeito”, isto é, a existência intencional dos objetos na
consciência. A ênfase ao que está presente à consciência é uma amostra deste
princípio na gestalt-terapia.
Baseado também na totalidade consciência-objeto, Husserl sugere a
análise intencional, que não significa que o objeto esteja contido na
consciência, mas que só tem seu sentido para uma consciência. Esta difere do
senso comum, pois não existe objeto em si, mas objeto percebido, pensado,
imaginado etc. Consciência e objeto não são entidades separadas, mas formam uma
relação co-original. Para tanto, é necessária uma redução ou abstenção
fenomenológica (“epockhé”), uma colocação entre parênteses da realidade tal
como a concebe o senso comum (como existindo em si, independente de todo ato de
consciência), ou seja, uma suspensão dos “a priori”, pressupostos e
pré-conceitos. Isto se revela na gestalt-terapia em uma atitude de empatia, de
não avaliação, de ênfase no óbvio.
. Merleau-Ponty
(1908-1961). O psicólogo, antropólogo e filósofo
francês tem como tema fundamental a relação entre o homem e o mundo. Analisa as
investigações psicológicas das décadas anteriores e busca eliminar a
interpretação causal da relação entre corpo e alma, vendo esta relação como uma
dualidade dialética de comportamento, expressa em níveis e significados
diferentes. Afirma que a consciência é sempre um eu consagrado ao mundo. Seu
conceito central é a “carne”, constituidora da inserção da consciência no
mundo, dotada de um instrumento para a projeção de um mundo cultural, a
‘linguagem’, um sistema particular de vocabulário e sintaxe, revelador do ser
ou de nossa ligação com o ser. Vê o mundo e o homem como sempre ‘abertos’,
‘inacabados’ em seu significado, reenviando sempre para além de suas
manifestações determinadas. São dotados de ‘ambigüidade’. De acordo com Rezende
(in: Forghieri [org.], 1984), Merleau-Ponty propõe critérios para a
constituição de uma psicologia fenomenológica:
-
humana: pois estuda o homem em não os animais ou um mundo inferior;
- estrutural: estuda as diversas experiências
humanas na integração de diversos níveis, mundos e formas (estruturas);
- dialética: reconhece a pluridimensionalidade
existente no interior da existência, em oposição ao psicologismo, que reduz os
sentidos do humano a apenas alguns aspectos;
- simbólica: pois o mundo é o mundo do símbolo,
caracterizado pela polissemia (vários significados) e pela encarnação (tornar
‘carne’) do sentido. Nenhum sentido esgota a polissemia
do homem;
- existencial: pois não é uma teoria apenas
sobre o humano, mas um estudo sobre seu existir concreto (comportamento);
acompanha não só as etapas já vividas, mas apreende atualmente (presente) o
sentido do que está sendo e do seu vir-a-ser (futuro). A fenomenologia de
Merleau-Ponty, finalmente, preocupa-se com a essência das coisas, mas
recolocando a essência na existência; melhor dizendo, preocupa-se com a essência
(do) existente.
b) Existencialismo. Proporcionou maior concretude
à metodologia fenomenológica através de sua aplicação às questões da existência
humana.
. Kierkegaard (1813-1855). “Pai do existencialismo”, este filósofo cristão
desenvolveu suas idéias a partir de sua existência pessoal, rejeitando qualquer
sistematização e superenfatizando a subjetividade e a existência pessoal. Isto
se revela na gestalt-terapia em sua negligência à objetividade, à existência
coletiva e à necessidade de teorização sistemática.
. Nietzsche (1844-1900). Filósofo “maldito” e, portanto, influência pouco explorada na
gestalt-terapia, é “pai” da vertente existencialista materialista, tendo seu
nome ligado às idéias do “Super-Homem” (homem auto-atualizado), de “vontade de
potência” (plenificação e retomo da vida) e do “trágico” (integração entre os
aspectos “dionisíaco” - de Dionísio, deus da música, da embriaguez e da
ultrapassagem dos limites - e “apolíneo” - de Apolo, deus da bela forma, da
escultura, dos limites individualizantes e da lucidez) (Fonseca, 1988). Estes
aspectos podem ser percebidos na gestalt-terapia na crença na capacidade de
auto-atualização humana e a expressão da totalidade caos-ordem nos grupos
vivenciais.
. Buber (1878-1965). Filósofo judeu que
desenvolveu a categoria do diálogo (Buber, 1977; 1982) como a integradora entre
a vivência e a reflexão e propiciadora da criação de comunidades humanas. Trata
das atitudes básicas da existência humana: a atitude Eu-Tu, caracterizada pelo
envolvimento e dotada de reciprocidade, imediatez, presença e responsabilidade
(plenamente enfatizada pela gestalt-terapia); e a atitude Eu-Isso,
caracterizada pela separação ou distanciamento e necessária para a produção
teórico-científica (negligenciada ou mesmo rejeitada na gestalt-terapia).
Assim, a gestalt-terapia como uma psicoterapia baseada no encontro existencial
seria dotada de dois movimentos: relação (Eu-Tu) e distanciamento (Eu-Isso),
sem os quais não se caracteriza como tal, uma vivência da teoria e uma
teorização da vivência.
. Heidegger (1889-1976): filósofo que
desenvolveu a concepção de “Dasein”, o “ser aí”, determinado no tempo e no
espaço, singular concreto, que pergunta pelo sentido do Ser, o homem. Suas características seriam a facticidade (um ser de fato, dotado das
coisas do mundo), o “ser com” (o fato de conviver com outros “Dasein”) e a
temporalidade (através da qual realiza a sua essência). Suas categorias básicas
ou “existentialia” seriam o entendimento (negligenciado pela gestalt-terapia),
o sentimento (enfatizado pela mesma) e a linguagem (destacada por Fritz, mas
pouco enfatizada pela gestalt-terapia). A autenticidade seria exatamente a
realização destes “existentialia” (Penha, 1984).
. Sartre (1905-1980). O
grande nome do existencialismo é pouco citado por Fritz, mas poderíamos nos
referir à sua noção de “projeto” (o homem como próprio construtor de sua
essência) e de “responsabilidade” (habilidade de resposta).
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
FEDER, B. & RONALL, R. (orgs.) Beyond
the Hot Seat: Gestalt Approaches to Group. New York: Brunner/Mazel, 1980.
FONSECA, A.H.L. da. Grupo:
Fugacidade, Ritmo e Forma. Processo de Grupo e
Facilitação na Psicologia Humanista. São Paulo: Ágora, 1988.
PERLS, F. S. Ego, Hunger and Aggression:
The Beginning of Gestalt Therapy. New
York: Random House, 1969.
_____. A Abordagem Gestáltica e Testemunha Ocular
da Terapia. Rio de Janeiro: Zahar, 1977.
_____. Escarafunchando Fritz: Dentro
e Fora da Lata do Lixo. São Paulo: Summus, 1979.
REZENDE, A. M. de.
“Fenomenologia e Dialética” in: FORGHIERI, Y. C. (org.) Fenomenologia e Psicologia.
São Paulo: Cortez/Autores Associados, 1984.
SHEPARD, M. Fritz Perls: La Terapia Guestaltica. 1. ed. Buenos Aires: Editorial Paidos, 1977.
*
Conferência apresentada ao I Encontro Norte-Nordeste de Gestalt-Terapia, em
Recife, de 29/11 a 02/02/1990.
**
Psicólogo (UFC, 1981), gestalt-terapeuta (treinamento com Gercileni Campos,
1987), professor e supervisor em psicologia clínica (UNIFOR, 1985), mestrando
em educação (UFC, dissertação “O Processo de Cooperação na Psicoterapia de
Grupo em Gestalt-Terapia”).
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