Walmir Monteiro
O presente artigo, a partir dos conflitos entre psicoterapia, psiquiatria, psicanálise e neurociência, atrai toda essa polêmica para uma rediscussão dentro de um novo cenário: a saúde mental. Perguntamos, afinal, o que querem, em relação aos objetivos da saúde mental, a psiquiatria, a neurociência, a psicoterapia e a psicanálise? E focamos especialmente o que pensa em termos de fundamentos, e o que realiza profissionalmente o psicólogo existencial.
Alguns psicanalistas dizem que a psicanálise não pode aderir aos objetivos da saúde mental como posto pelo MS porque isto seria abrir mão de seus preceitos, permitindo uma depreciação da mesma, porque a psicanálise precisa ser afirmada como uma prática singular que não se confunde com outros tipos de tratamento. Ou seja, psicanálise não é tratamento de coisa alguma. E sempre que dizem isso desfilam a reafirmação das diferenças entre ela e a psicoterapia. Só que desconhecem que não há apenas uma forma de psicoterapia, mas quase sempre que autores psicanalistas escrevem sobre suas diferenças com a psicoterapia tratam toda psicoterapia como comportamental, pelo tanto que aludem à eliminação de sintomas.
Demonstrando total desconhecimento da prática existencial afirmam que a psicoterapia (que psicoterapia?) tem em sua origem a proposta de confortar os homens de sua angústia. Entretanto, o tema “angústia” é tratado pela fenomenologia-existencial como o cerne da análise da existência compreendendo-a como um necessário componente da existência humana que não é alvo de tratamento e sim de aproveitamento e contemplação na forma como surge, impondo-se como uma oportunidade do ser mergulhar compreensivamente nos sentidos de suas angústias que não são vistas como sintomas e sim como a própria oportunidade de autoconhecimento e apropriação da sua visão de mundo, do seu modo de ser.
Também a psicoterapia existencial não se dispõe a tratar ninguém e muito menos afirmar-se como “promessa de apaziguar o mal-estar inerente ao sujeito através da eliminação do sintoma”[1].
Parafraseando Alberti e Figueiredo ao se referirem aos objetivos da psicanálise também afirmamos que a prática existencial igualmente não visa eliminar a angústia do sujeito, pois é a partir dela que o ser tem a possibilidade de atribuir um sentido a sua vida. A psicoterapia existencial, da mesma forma, não promete dissipar o mal-estar, não promete nenhum bem e sim um meio diferenciado de posicionamento do sujeito frente ao seu (dito) mal-estar. Ainda quando os psicanalistas clássicos dizem que não há na psicanálise o objetivo exclusivo de curar o sujeito de seu sintoma, fazem uma tola e imprópria redução da psicoterapia (qualquer psicoterapia, mesmo a comportamental) porque as psicoterapias em geral não se dedicam a apenas curar sintomas. E quando admitem que certamente há efeitos terapêuticos na psicanálise que “independem dos ideais do analista, mas sua obtenção se dá em razão de que falar faz bem”, referem-se exatamente ao que faz a psicoterapia existencial.
A psicanálise diz - da mesma forma que a psicoterapia existencial - que a psicose tem uma lógica própria, que é uma das formas do sujeito se situar no mundo, um modo específico de constituição e funcionamento de um sujeito. Se os psicanalistas se dedicarem a ler mais sobre a psicopatologia fenomenológica se verão menos distantes da psicoterapia. E provavelmente ficarão mais frustrados, porém menos vaidosos. Uma vaidade ingênua, infantil, oriunda da falta de estudo.
Assim, encontramos diversas semelhanças entre a prática psicanalítica e a prática psicoterápica, embora o discurso da análise clássica tente se impor como um saber à margem do interesse do paciente em mudanças de conduta. Sim, é a clínica psicanalítica que confirma o ditado popular de que “na prática a teoria é outra”.
Importante também observar que a psicanálise tem mudado e continua mudando, e cada vez mais se parece com o método fenomenológico, embora não admita isso. Mas vejam Winnicott, Lacan e muitos outros psicanalistas, examinem como seus discursos são contidos de um entendimento mais fenomenológico que positivista que é o berço da antiga psicanálise.
Diante das neurociências o discurso da psicanálise é o de tentativa de eliminação dos dados biológicos na constituição da personalidade, insistência que – desconfiamos - se dá menos pelo desconhecimento e mais pela obsessão em se impor como um saber autônomo, exclusivo, resistente à natural compreensão de que somos tanto nature como nurture (natureza e orientação). Em relação a isso a fenomenologia-existencial defende que nossas constituições abarcam além da condição humana a condição natural. Sartre diz que o mais importante não é o que fazem de nós (que inclui a condição natural), mas o que fazemos daquilo que nos fazem (condição humana). Somos diferentes da psicanálise porque não ignoramos, infantilmente, a realidade da genética.
Infelizmente a psicologia ainda anda muito contaminada pela vaidade psicanalítica, pelo positivismo, pelo modelo médico arcaico, sem prestar a devida atenção ao que nos ensina a fenomenologia.
E quando a psicanálise diz que “há mais do que um corpo biológico, há um corpo pulsional”, nas entrelinhas está admitindo que há, efetivamente, um corpo biológico. A pergunta que não quer calar é: se se admite o biológico porque também não se admite que esse lado biológico, tem, sim, uma parte de influência na constituição da personalidade?
E o que diz a fenomenologia-existencial das concepções oficiais de “saúde mental”? No Portal do Ministério da Saúde, consta uma definição de “saúde mental” precedida da informação de que para a OMS não existe definição "oficial" de saúde mental. Ou seja, nem mesmo órgãos oficiais se atrevem a afirmar o que é, afinal, saúde mental. O Ministério da Saúde explica que diferenças culturais, julgamentos subjetivos, e teorias concorrentes afetam o modo como a "saúde mental" é definida. Contudo, “oficiosamente” diz que saúde mental se refere ao nível de qualidade de vida cognitiva ou emocional de uma pessoa, incluindo sua capacidade de apreciar a vida e buscar a resiliência psicológica, acrescentando que desfrutar de saúde mental é bem mais do que simplesmente não ter transtornos mentais.
A Política Nacional de Saúde Mental tem como objetivo democratizar e garantir o acesso das pessoas com transtornos mentais aos serviços públicos de saúde que sua cidade oferece incluindo os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), os Serviços Residenciais Terapêuticos (SRT), os Centros de Convivência e Cultura e os leitos de atenção integral (em Hospitais Gerais). Além do programa “De volta para casa” que oferece bolsas para egressos de longas internações em hospitais psiquiátricos.
Na perspectiva existencial acenamos para alguns cuidados que precisamos ter com nossas definições. É fato que para oferecermos serviços de atendimento de saúde ao público que sofre disfunções mentais não precisamos nos alicerçar em rígidas definições. O fato é que ainda pensamos a saúde a partir de um modelo médico-positivista que faz tal exigência. Mas, por que não é possível definir saúde mental?
Mesmo afirmando que não se pode dar uma definição oficial, a OMS e no caso brasileiro o Ministério da Saúde, capricham nas definições e detalham “o que é saúde mental” dizendo que se trata do “equilíbrio emocional entre o patrimônio interno e as exigências ou vivências externas, e a capacidade que uma pessoa tem de administrar sua própria vida e emoções (...) sem perder o valor do real e do precioso”.
Ora, a definição é conservadora e começa afirmando a existência de um “patrimônio interno”, mas não se estende para explicar de que se constitui esse “patrimônio interno”, desconfiamos que se referem a potencialidades e predisposições genéticas. Mas acrescentam que há saúde mental quando a pessoa busca equilibrar o seu “patrimônio interno” com as exigências externas. Todavia, a minha saúde mental pode muito bem afirmar-se pelo contrário: pela minha disposição em questionar as exigências externas e tentar mudá-las, e nesse caso provocaria um desequilíbrio. Não seria isto mentalmente saudável?
Prosseguem dizendo que saúde mental “é estar de bem consigo e com os outros, aceitando as exigências da vida”. Parece, então, que não consideram o fato de que a dinâmica da vida envolve uma constante transitoriedade entre “estar bem e estar mal” mesmo (e talvez principalmente) consigo mesmo. E quando incluem “aceitando as exigências da vida” ficamos meditando como é perigoso esse “aceitar” como regra de saúde, quando, às vezes, na verdade, o mais saudável é rejeitar. Além disso, é muito ampla essa idéia de “exigências da vida”. Que exigências são essas? Formuladas por quem? Por que são exigências??
Mais para frente afirmam que há saúde mental quando a pessoa lida bem com suas emoções agradáveis e com suas emoções desagradáveis. Até aí tudo bem, mas é altamente questionável quando fazem duas listas de emoções dizendo que é agradável sentir amor, alegria, coragem, e serenidade (emoções boas) e desagradável sentir ódio, tristeza, medo e raiva (emoções más). Não nos resta dúvida de que, em diversos momentos, as emoções aqui catalogadas como más, são bastante necessárias ao equilíbrio mental. E como é bom, como faz bem – admitamos - uma explosão de raiva em determinados momentos!
Também fazem uma lista com critérios de saúde mental, na qual constam: Atitudes positivas em relação a si próprio; crescimento, desenvolvimento e auto-realização; integração e resposta emocional; autonomia e autodeterminação; percepção apurada da realidade e domínio ambiental e competência social.
Não vamos analisar um a um desses critérios, mas dizer que nenhuma jornada humana abarca essa linearidade. Repetimos que o nosso desenvolvimento saudável comporta idas e vindas, progressos e retrocessos, luz e sombra. Nosso desenvolvimento é sinuoso e não linear. Dessa forma não podemos categorizar o estado saudável como um estado na ordem desses critérios. Muitas vezes ser saudável implica em se negar, se auto-questionar, descontruir e romper com a norma de determinadas competências sociais.
Como, então, na perspectiva fenomenológica compreendemos “saúde mental”?
A título de iniciação lembramos que na abordagem fenomenologico-existencial, existem alguns conceitos que podem ser superficialmente entendidos, fazendo surgir práticas equivocadas realizadas em nome da fenomenologia ou da psicologia existencial, que poucos conhecem em profundidade. A existencial possui densos fundamentos filosóficos, não é uma linha psicológica fácil, pelo contrário, demanda muito estudo, muito tempo, muita dedicação para trabalhar a partir de seus princípios e métodos.
Podemos pensar no existencialismo como uma corrente filosófica que apresenta fundamentos para entender o homem em sua estrutura, sua angústia e o seu modo de ser e de se relacionar com o mundo. É, portanto, a teoria que embasa a prática nessa abordagem. Fenomenologia por sua vez, é o caminho que seguimos para encarar as sessões de terapia e vivenciar o nosso encontro com o cliente. É, portanto, a Fenomenologia, o nosso método.
A proposta existencialista é a de conhecer as fundamentações do homem, analisando as questões que ele coloca em pauta e que revelam a estrutura desse ser-no-mundo. Existir é simplesmente você ser afetado por aquilo que vem ao seu encontro, e o homem só existe enquanto “ser abertura” e “ser-com”, aquele que se relaciona e é afetado pelo mundo, pelos outros homens, seres e coisas. Assim, vemos o ser humano a partir de suas relações e da maneira como ele é afetado por elas, como lida com os fenômenos.
A aparência não esconde a essência do homem, mas a revela. O psicólogo existencial não procurará, portanto, algo por trás do que se diz, mas entenderá o próprio dizer, as pequenas manifestações como sendo em si mesmas, reveladoras do sujeito, buscando analisar o jeito do seu cliente se relacionar com o mundo e de estabelecer vínculos. Coisas que revelam a sua estrutura. Isto possibilita tanto o esclarecimento de sua essência, como o processo de constituição dessa estrutura de ser, sua identidade.
No momento do encontro com o cliente, não há julgamento, nem valores, uma vez que a teoria entrará num segundo momento (epoché). Cabe ao terapeuta estar presente e disponível a esse encontro, e cabe ao cliente apresentar o que há de importante, evidenciando o que deve ser trabalhado. O papel do analista existencial é seguir esse caminho, iluminando-o e revelando-o.
Nós, psicólogos existenciais nos esforçamos em encontrar o outro onde esse outro está, buscando compreender o que ele entende da forma como entende, para que ele se reconheça e assuma as responsabilidades de suas escolhas e do que continua escolhendo como sua forma de ser, porque o homem é um ser livre, capacitado a escolhas e ao delineamento de sua própria vida. O homem, sim, é livre para escolher, mas isto não significa que suas possibilidades são ilimitadas. O campo existencial do homem revela limites relacionados a aspectos culturais, condições corporais, historicidade e sua ambiência, sendo que esse conjunto define suas possibilidades de escolha. Mas, por mais que se estreitem os nossos graus de liberdade, sempre teremos uma faixa de escolha e nela desfrutaremos da possibilidade de mudar a nossa existência.
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[1] PSICANÁLISE E SAÚDE MENTAL: UMA APOSTA (204 p.)Sonia Alberti e Ana Cristina Figueiredo (Orgs) Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2006.
4 comentários:
VOCÊ É ÓTIMO WALMIR! Temos escolhas sim, escolhas limitadas, como vc bem disse, por várias condicionantes.
Será que uma doença mental é uma condicionante de per si? Por exemplo, quem tem TOC pode escolher evitar aquele padrão de repetição de comportamentos e verificação? Eu acredito que essa pessoa nao teria escolha, ao menos não inicialmente (antes de tomar medicações e de fazer terapias), porque, se ela tivesse escolha, o TOC não seria uma doença propriamente dita, seria? Ou não?
Oi Marcela, que prazer encontrá-la por aqui! Obrigado pelo comentário.
Veja só, quando a psicologia existencial afirma que toda pessoa é constituída de suas escolhas ela leva em conta um aspecto fulcral que não podemos esquecer que é a facticidade.Parece que foi Ortega Y Gasset que disse que "o homem é ele e as suas circunstâncias". Sartre chamaria essas circunstâncias de facticidade, ou seja, aquilo que não posso modificar, um dado de realidade que faz parte de uma condição natural. Reflito que o principal da afirmação que nos constituímos de nossas escolhas é, como disse Sartre, o fato de que "sempre há algo a fazer acerca daquilo que a vida (ou o outro) fez de nós".
Se tenho uma patologia, um TOC por exemplo, este é um dado de facticidade - penso. Mas o que farei disso?
Perceba que entre diversas pessoas que sofrem da mesma patologia você encontrará diversos modos (diferentes modos) de encará-la. É por isso que dizem com razão que no caso do câncer é fundamental para a recuperação o modo como a pessoa encara essa situação, para além dos dados biológicos que também são fácticos.
Graaande abraço!
Oi Walmir,
Eu por aqui sim. É sempre muito bom ler algo seu. Preciso lhe dizer que compreendi bem o que vc falou e que concordo que mudar como se encara um câncer pode permitir, ao menos em tese, o vislumbre de um mínimo "escolhível" dentro daquilo que se cria ser, até então, um destino imutável.
O problema é que o modo como se encara uma limitação também é delimitado: pela cultura, crenças, ajuda de amigos e familiares, firmeza de caráter, etc, etc.
Sabe aquelas bonequinhas russas, as famosas Matryoshkas, que permanecem uma dentro da outra, de forma que há cópias da mesma boneca, de tamanhos cada vez menores, dentro da maior? É assim que muitas vezes me sinto: presa dentro de mim mesma, sem escolhas reais.
Obrigada por me fazer pensar diferente ao menos dessa vez.
"Perceba que entre diversas pessoas que sofrem da mesma patologia você encontrará diversos modos (diferentes modos) de encará-la. É por isso que dizem com razão que no caso do câncer é fundamental para a recuperação o modo como a pessoa encara essa situação, para além dos dados biológicos que também são fácticos."
Exatamente, caro Walmir! Tudo dependerá de como significamos os fenômenos!
Parabens, querido!
Thais
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