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terça-feira, 12 de julho de 2011

sábado, 2 de julho de 2011

domingo, 12 de junho de 2011

sexta-feira, 10 de junho de 2011

SOLIDÃO

A solidão, no entendimento existencial, é um tema paradoxal. O homem é um ser-no-mundo, mas um ser solitário. É importante vislumbrar o homem em permanente relação com o mundo, mas o seu mundo é ele quem faz. O mundo não irá socorrê-lo existencialmente, o mundo não irá determiná-lo em nenhuma instância e em nenhum aspecto. O mundo dilui-se no âmago do ser, sendo a todo instante reconstruído nas circunstâncias de escolhas, ações e reações do indivíduo.
No romance “Antes Só”  o protagonista sai de casa para curar sua solidão, mas encontra na rua pessoas que ele julga felizes, pessoas que estão acompanhadas e sorridentes, mas ele continua ali sozinho, acompanhado de sua solidão. Este homem amargura-se e mergulha num autocomiseração, sentindo pena de si mesmo, mas não age no sentido de buscar as pessoas, falar com elas, construir vínculos e relações; possivelmente ele espera que as pessoas cheguem até ele para tirá-lo da solidão. Ele não sabe de duas coisas: primeiramente que nada prova que se ele se relacionasse com muitas pessoas seria mais feliz, e outra coisa que ele não sabe é que a solidão é ontológica, inseparável da condição humana. A representação de felicidade que faz é estar rodeado de muitas pessoas, de ter com quem sair para jantar, mas tudo isto está no plano do “fenômeno do ser”, ele não acompanhou estas pessoas antes de elas chegarem àquele restaurante e nem mesmo as acompanhou na saída para conhecê-las em suas realidades particulares e pessoais. Se ele rumasse ao “ser do fenômeno” que inicialmente encontrou naquele cenário e naqueles rostos sorridentes, certamente  conheceria a essência do fenômeno, a realidade comum, a solidão daquelas pessoas “felizes”.
Esta não é uma análise pessimista como parece ser, mas realista, dado que apontamos a realidade da solidão imanente ao ser humano. E o fato conclusivo é que jamais nos desprenderemos da solidão, mas nem por isso devemos nos afundar nela. A solidão é nossa companheira, mas ela não precisa ser a tônica da nossa vida. De fato, se entendermos que o contrário da solidão é a vivência de relações que nos permitem uma vida constituída de oportunidades de comunicação e compartilhamento, descobrimos que compartilhar é viver além da solidão, mas que esse compartilhar é formado inclusive das trocas solitárias que fazemos com aqueles a quem queremos bem e a quem escolhemos como parceiros de compartilhamento e de solidão.
A solidão, seria assim, um componente da felicidade de termos com quem dividir nossa existência. O ser-com é isso: ter com quem dividir angústias e prazeres, tristezas e alegrias, que vão formando essa relação dialética entre bom e ruim, positivo e negativo, e tudo isso nos conduz à compreensão de que não existe nada inteiramente bom e nem inteiramente ruim. O ser-com estará sempre prsente, mesmo que ninguém esteja ao nosso alcance, mesmo em uma ilha deserta, já que a nossa referência de ser passa necessariamente ao que pensamos e sabemos acerca do que significa o outro.
Não existe solidão inteiramente solidão se temos obstinação suficiente para nos abrirmos a todas as relações possíveis que possam nos retornar o prazer do compartilhamento. Nossa solidão, portanto, dilui-se no processo de vinculação e abertura ao outro e ao mundo. Sem defesas excessivas, sem autocomiseração e sem a ilusão de que a vida tenha qualquer obrigação de fazer-nos felizes. A solidão compartilhada não pode ser uma afecção de dor, já que é apenas uma partícula de um sem-número de sentimentos e emoções que vão e vem.
(WALMIR MONTEIRO)

quarta-feira, 27 de abril de 2011

Drogas - Um olhar existencial


MOSAICO
Revista Multidisciplinar de Humanidades
Centro de Ciências Sociais e Humanas - USS (RJ)
ISSN 2178-7719
Volume 1 - Nº 2
Revista Indexada - http://sumarios.org 
Autor: Prof. Ms. Walmir S. Monteiromanas
Revista

sexta-feira, 22 de abril de 2011

TEATRO

ENTRE QUATRO PAREDES - De Jean Paul Sartre. Direção: João Marcelo Pallottino. Com Andréa Cevidanes, Lindolfo Melo, Rodrigo Vasco e Symone Strobel. A partir de 16 anos. Local: Teatro Miguel Falabella - Sala Atores de Laura.. 

segunda-feira, 28 de março de 2011

DEUS E O DIABO NA TERRA DO SOL - GLAUBER ROCHA (1964)

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ENTRE QUATRO PAREDES






Morte: um tema existencial

Neste video um dos pontos centrais do filme MINHA VIDA SEM MIM. A protagonista só entra em contato com seus mais importantes sonhos e desejos quando se vê diante da realidade da morte. Uma reflexão importante acerca da morte enquanto temática existencial.

MINHA VIDA SEM MIM - Temática Existencial

Um dia, ela descobre que tem uma doença grave. Sem contar a ninguém, começa a fazer uma lista de tudo quanto sempre quis fazer mas nunca teve tempo ou oportunidade. E começa uma trajetória em busca de todos os seus sonhos, desejos e fantasias. Mas sempre imaginando como será a vida sem ela.

domingo, 27 de março de 2011

UM EXISTENCIALISTA NO SERTÃO

Hélio Bloch em entrevista à Revista Civilização falou sobre a possível influência do pensamento francês na filmografia nacional, e citou a peça O Diabo e o bom Deus de Jean-Paul Sartre, como uma inspiração – “filosófica e estrutural” – para a película Deus e o Diabo na terra do sol de Glauber Rocha.
Essa declaração nos chama a atenção para uma perspectiva ainda pouco analisada: a força que o existencialismo – principalmente o francês – teria sobre este cineasta baiano, um dos expoentes do Cinema Novo e da cinematografia nacional.
Pensamento da moda durante as décadas de 60 e 70, o existencialismo marcou espaço tanto nas discussões filosóficas da época – graças principalmente a Jean-Paul Sartre –, quanto no universo artístico – principalmente no teatro e no cinema.Godard, Truffaut, Eric Rohmer e a própria publicação Cahiers du Cinéma, entre outros, marcaram e definiram o estilo da Nouvelle Vague pelos seus personagens reflexivos e introspectivos, sobre sua realidade.
Hipoteticamente, como seria fazer filmes que representassem uma proposta “existencialista”? Talvez, dentro do que poderíamos chamar de uma práxis cinematográfica, abandonaríamos todos os preceitos técnicos clássicos e, ignoraríamos o possível “espectador-alvo” .Desde o início já teríamos um roteiro que estivesse enquadrado com a visão existencialista de mundo, e que servisse tanto para expor e expandir este ideal filosófico, quanto para tornar as pessoas mais engajadas dentro desta forma de ver e agir. Os personagens certamente seriam pessoas comuns, simples, típicos exemplos do nosso tempo e lugar e, que em seu cotidiano, expressariam as preocupações, dúvidas e soluções de qualquer existencialista; além disso, estariam engajados em discutir a irracionalidade da vida e a segurança artificial concedida pela adesão aos valores convencionais da burguesia.
A proposta do Cinema Novo não era ser existencialista, mas é inegável a presença do existencialismo na postura de alguns personagens. Construções elaboradas por Glauber Rocha corroboram com esta linha filosófica, inclusive isto fica bem claro nas semelhanças entre a peça O Diabo e o bom Deus e a película Deus e o Diabo na terra do sol.
Não achamos na biografia de Glauber citações ou momentos que tornem explícita a presença ou a influência direta de ideais existencialistas sobre o cineasta; contudo, encontramos pontos análogos entre o seu filme e o texto de Sartre. A peça O Diabo e o bom Deus foi encenada pela primeira vez em 1951, logo se tornando um grande sucesso – ficou quase um ano em cartaz na capital francesa. Considerada como a obra que expressa com clareza os ideais ateístas de Sartre, ela afirma violentamente o humanismo sartriano, através da figura do capitão alemão Goetz que, para orientar uma melhor e mais eficaz ação entre os homens, oscila entre valores absolutos e relativos.
Goetz é um gênio militar que, em meio às guerras religiosas da Idade Média insiste em afirmar sua onipotência perante os conceitos do Bem e do Mal, acreditando que seus atos resultam apenas da sua vontade, dos seus desejos; e assim não admite a possibilidade de sofrer influência de qualquer fato ou de qualquer pessoa externa – entre as quais ele inclui Deus e o Diabo.
Goetz pratica o Mal como forma de reafirmar a sua vontade: toda a violência ou massacres que comete são afirmações da sua capacidade de decidir o que vai ou o que não vai fazer, sem se importar com as consequências; é a prática do Mal pelo Mal. Na primeira parte da sua história, quando desafiado a realizar apenas o Bem – atitude “muito mais difícil” que praticar o Mal – Goetz tenta asseverar sua vontade optando por alterar sua conduta; na verdade, ele não crê nem em Deus nem no Diabo: ele sonha com o Absoluto, quer fazer absolutamente o Mal ou absolutamente o Bem, para ser ele mesmo Deus ou o Diabo.
Ao final, o capitão constata que nenhum destes conceitos está completamente desprendido do outro, que o Mal só é compreendido a partir do Bem, além do fato de que para se praticar o Bem, às vezes deve-se utilizar do Mal – e vice-versa -, que pode-se ter as “mãos sujas”2.
Goetz, de certa forma, tem dois companheiros em suas experiências, para vivenciar os conceitos de Bem e de Mal: O revoltado padeiro Nasty, que estimula em Goetz o seu lado Mal, e o padre Heinrich, que questiona o Bem prometido pelo capitão. Entretanto, estes personagens mesclam os valores, não possuem práticas estritamente ligadas ao Bem ou ao Mal: os dois se propõem a defender o Bem, mesmo que para isso, tenham que praticar o Mal; mas Goetz não compreende as posições de Nasty e de Heinrich e por isso, tenta manter a distinção entre os valores.
Ele é um personagem deslocado no tempo e espaço, cujas reflexões e dúvidas não se encaixam com as dos outros personagens, mas na verdade esboçam mudanças no pensamento de Sartre: “Tentei mostrar um personagem tão deslocado junto às massas de seu tempo quanto Hugo, o jovem burguês, herói de Mãos Sujas, e igualmente atormentado” (Sartre, citado em Cohen-Solal, 1986:414). É o período em que Sartre tentar resolver a crise que surge entre o seu constante embate com os marxistas e a sua opção pelo partido comunista, através de um discurso que defenda o “homem de ação”, aquele que realmente tem o poder para mudar a sua realidade.
De certa forma, tanto Glauber quanto Sartre optam por elaborar histórias onde seus protagonistas vivenciassem elementos clássicos representativos do Bem e do Mal; enquanto que o vaqueiro Manoel acompanha a religião e o banditismo, Goetz escolhe seu caminho através de um militarismo sanguinário e um fanatismo religioso. Nas duas obras, estes momentos de confrontação com estes valores estão apresentados em diferentes segmentos da história – de forma alternada é verdade, já que Manoel primeiro se depara com o representante de Deus e depois com o “Diabo Louro”. Ao contrário de Goetz, que primeiro opta viver o Mal absoluto e depois o Bem absoluto, o escritor e o diretor dividem suas obras em partes, cada uma destinada, a refletir e expor os seus pontos de vista sobre estes valores e a relação destes com os homens. O Mal e o Bem, a ordem e a desordem, o santo e o sacrílego, Deus e Diabo, são representações do universo do sagrado; suas relações, ou melhor, suas transmutações, evidenciam o que Durkheim (1989) chamou de “ambiguidade do sagrado”, e é a partir destas relações que se vai se criando, por exemplo, uma simbologia religiosa sertaneja.
Essas obras estão também sob o signo da            violência. Religião e violência são as bases constitutivas das duas histórias, de forma que a violência é como a alma do sagrado. Corisco é o Mal em pessoa, cuja intenção é instaurá-lo. Sua filosofia é libertar os sertanejos da fome e da miséria... com a morte! Desta forma, ele quer o Bem através do Mal, ou melhor, através da violência. Ele é um benfeitor - um Diabo branco ou um Deus branco, dependendo da perspectiva de quem o olha -, que carrega suas graças nas costas da morte. Ele legitima e beatifica a violência: “Um homem nesta terra só tem validade quando pega nas armas pra mudar o destino. Não é com rosário não. É no rifle e no punhal.”, diz Corisco a Manoel. Tal discurso é semelhante às conclusões finais de Goetz, que admite que terá que usar a violência para atingir seu projeto de ser humano, a paz na terra: “O reinado do homem está começando. E começando bem. Vamos, (...), serei carrasco e carniceiro”.
O beato Sebastião não se assemelha aos valores absolutos apontados inicialmente para o Bem por Goetz, já que este, ao se propor a seguir Deus, colocava-o com a expressão pura do Bem, da bondade, do perdão, do amor. É fato que tanto Goetz quanto Sebastião, em seus discursos, vão ter embates com as práticas mercantilistas da Igreja Católica – que se propõe a contratar Antônio das Mortes para matar o beato -, vista como ambiciosa, negligente com a situação de seus fiéis e defensora dos senhores de terra. Contudo, Goetz vê o caminho do Bem, inicialmente, como sendo o de Deus, como algo absoluto, que não admite deslizes ou outras possibilidades – mas destoa das autoridades eclesiásticas -, enquanto que Sebastião demonstra uma concepção de que o caminho dos céus poderia ser mais “tortuoso”, que o Bem. Não é sempre a atitude que leva seus fiéis a Deus, ou aos seus objetivos.
Os homens de ação – aqueles que comandam os seus destinos e os dos outros –, na obra de Glauber, são aqueles que mesclam os valores do Bem e do Mal: Sebastião e Corisco atuam levando em consideração uma relatividade dos valores do Bem e do Mal, misturando-os, alternando seus atos para atingir seus propósitos; desta forma, o beato e o cangaceiro destroem as fronteiras entre estes conceitos e tomam atitudes sem questionar ou refletir sobre as conseqüências e interpretações destes. Estes dois líderes se colocam acima das distinções entre Deus e o Diabo, entre o Bem e o Mal. Para alcançar seus objetivos, os meios não devem ser questionados, mas encarados como momentos intermediários para que se atinja os fins almejados.
Nosso herói glauberiano – Manoel –, que deve atingir o mesmo patamar de Sebastião e Corisco, está sempre diante de uma liderança social, seja ela ancorada no poder religioso, ou mesmo no poder das milícias populares do cangaço. A proposta geral do filme, neste ponto, seria a crença-descrença, o apego/desapego aos ídolos, aos ícones. Algo semelhante que faz Goetz que, para convencer os camponeses de suas “boas intenções” e fazer com que estes o sigam, forja um milagre e, com a força da fé que incorpora, procura desacreditar os líderes populares e religiosos. Deparamos-nos com vários momentos, onde as posições do Bem e do Mal se misturam. Corisco, ao se referir sobre a sua futura disputa com Antônio das Mortes, define a luta como sendo a de Deus e o Diabo; o capitão – imagem do “Diabo Loiro” – critica Sebastião e assume o seu lugar enquanto defensor dos pobres. Da mesma forma, Sebastião que já havia criticado Padre Cícero – num encontro entre o beato e Lampião descrito por Corisco –, procura usurpá-lo do direito de representar Deus. Todos estes “homens de ação” desejam trazer a solução para a miséria, para o descaso ao qual o nordestino está condenado; e para isso, religiosidade e violência podem facilmente ser misturadas3, pois nenhuma base racional ou moral deve ser utilizada para que o indivíduo realize suas escolhas – o que ainda sustentaria uma visão existencialista.
            Goetz se apresenta aparentemente como dono de seu destino: ele age de acordo com suas escolhas individuais. Contudo, no decorrer da história, ele reconhece que não estava livre para realizar suas opções, que na verdade nunca conseguiu fugir de concepções sociais e religiosas. Nasty e Heinrich, de forma análoga a Corisco e Sebastião, são os homens de ação que acompanham Goetz, não na determinação do seu destino, ou na escolha de suas opções, mas como mentores para que este compreenda a ausência de uma barreira rígida entre os valores do Bem e do Mal. Goetz só se torna completamente livre quando admite não se orientar mais pelos valores que lhe são oferecidos, mas agir de forma que o Bem e o Mal possam ser misturados e utilizados indiscriminadamente – da mesma forma que Corisco e Sebastião. Como se nota, suas atitudes podem ser admitidas, incorporadas pelo seu objetivo, mesmo que seja através da violência; esta pode ser o fio condutor que torna os seus atos eficazes: a violência é transformada em algo bom, ela é positiva, neste novo sentido. A violência e a mescla de valores podem tornar a atitude humana mais objetiva, concreta, ao contrário da dispersão causada por conceitos subjetivos e evasivos.
            Manoel terá a chance de optar pelo seu destino graças a outro personagem marcante na obra de Glauber, graças a Antônio das Mortes, um matador de cangaceiros. Não igual aos outros tantos pistoleiros que povoam o sertão, ele não mata por dinheiro, mas mata porque não consegue conviver com a miséria dos nordestinos. A violência de Antônio das Mortes não é direcionada aos outros, mas o matador “propõe a sua própria violência como uma espécie de eutanásia” (Xavier, 1983:103), uma opção pela violência como forma de fazer justiça; este é o senso de justiça que perpassa as suas ações, uma espécie de vontade para ordenar o desordenado.
Para alguns estudiosos a origem de Antônio das Mortes está na sociedade brasileira da década de 60: durante este período, o país passa por grandes agitações; é uma época de estudantes nas ruas, das ligas camponesas, de novas formas culturais, da Arena, da ditadura militar, etc; neste momento, Glauber vê a construção de um novo pensamento sobre o país, de “um cara que vai à direita e à esquerda, que tem má consciência dos problemas políticos e sociais” (Avelar, 1995:107).
Na visão glauberiana, Antônio das Mortes é a expressão reinventada desta consciência. É o antagonismo do personagem de Maurício do Valle que move a história, que possibilitará Manoel achar o seu futuro, descobrir a sua própria vocação – para Kierkegaard, o mais elevado bem de todo indivíduo. A intenção de Glauber seria mostrar, através de Antônio, um povo “preso e imobilizado” (Avelar, 1995:109), que é levado pela consciência ambígua do matador de cangaceiros.
            O mesmo Antônio das Mortes4 talvez seja o melhor representante de uma ideologia existencialista no filme; este declara: “Um dia vai ter uma guerra maior neste sertão, uma guerra grande sem a cegueira de Deus e do Diabo. E pra que esta guerra comece logo, eu que já matei Sebastião, vou matar Corisco”. É bem explícito o discurso do personagem, no que se refere ao fato de que haverá uma revolta no sertão, que uma drástica mudança social ocorrerá, assim que o nordestino esquecer ou perder os padrões absolutos passados pelas imagens de Deus e o Diabo; estas referências alienantes apenas servem para cegá-lo sobre a necessidade de uma “guerra”, sobre a urgência de transformações que seriam comandadas por homens livres destes “mitos”. Mas é Antônio das Mortes que interromperá as experiências de Manoel e acelerará uma revolução no sertão. Mas da mesma forma que uma ambigüidade do sagrado e do profano marca Sebastião e Corisco, Antônio das Mortes também expressa uma: ele é o mercenário que ao mesmo tempo afirma que luta pelo bem do povo.
Antônio das Mortes não consegue enfrentar essa contradição, quanto menos resolvê-la. Ela pode ser dialética para a sociedade, mas não o é para ele. (...) Ele é o incompreensível, não é nem isto nem aquilo, ele é a contradição enigmática, e sua consciência está tão pouco clara que ‘num quero que ninguém entenda nada de minha pessoa. (...)’ Para sublimá-lo, ele tentará transformar-se em ser predestinado. Cumprirá sua função, a qual ele julga histórica (...).(Bernardet, 1978:79)
O propósito de Antônio das Mortes é determinar a liberdade de Manoel, lutar pelo fim da alienação deste; o personagem em si não almeja algo para si, mas cumpre sua função na história como se fosse o “escolhido” para tal. Antônio parece ignorar seu estado, sua condição e seu destino, mas acredita apenas na importância de seu papel para o futuro de Manoel, a ponto de afirmar que não imagina um futuro onde se encaixe, que deve morrer para que seu objetivo seja totalmente alcançado.
Desta forma, será o matador que permitirá a Manoel escolher o que fazer com a sua vida, constituir-se a si mesmo – “chegar ao mar” –, destruindo as causas de sua alienação, e não ter que seguir os outros. Manoel deve realizar suas escolhas a partir de suas experiências e de sua subjetividade – como na teoria existencialista -, e não seguir ou se basear no discurso de Sebastião ou de Corisco; não deve ser a “racionalidade” do “Beato Negro” ou do “Diabo Loiro”, baseada em propostas messiânicas ou do banditismo, que será o alicerce para a formulação da verdade de Manoel, mas sim a sua vivência. Jaspers afirmou que a única escolha que é realmente oferecida ao indivíduo está entre aceitar ou recusar a situação à qual está identificado; no caso de Manoel, até o momento da morte de Corisco, este optava sempre pelas respostas e pelas explicações sobre seu universo que lhe eram oferecidas pelo beato e pelo jagunço, o que significaria que o vaqueiro não rejeitava a realidade a que estaria submetido e se deixar subjugar pela sua falta de liberdade; apenas com a morte de Sebastião e Corisco e o fim da alienação que era proporcionada por estes, que Manoel descobre o seu caminho e parece se opor a sua condição inicial.
            A própria característica de Antônio das Mortes, de renunciar à Igreja e aos senhores de terra, a Manuel ou aos jagunços, exalta o caráter existencialista do personagem que age sem referências ou sem dar explicações – Glauber chega a afirmar que Antônio das Mortes é o único personagem realista5 da película. Como o homem sartriano, a principio, não é nada – este é o momento em que Antônio não entende seu objetivo em um futuro de revolução no sertão, e admite que deve morrer para que seus gestos tenham efeito apenas no decorrer de sua vida, através de seus atos concretos, – e este seria o “primeiro princípio do existencialismo” –, ignorando as leis6 e as obrigações morais, Antônio exaltará ao máximo as formas de sua liberdade. Os atos de Antônio são revolucionários, mesmo que indiretamente: a verdade que Antônio das Mortes permite Manoel alcançar é a mesma que Goetz reconhece na ineficácia de se ver o mundo dividido em valores absolutos: Antônio, agindo sempre de forma solitária, destrói a alienação gerada por Sebastião e Corisco, permitindo Manoel atingir seus objetivos – metaforicamente o mar; Goetz só reconhece que seus atos podem ser válidos, podem gerar os objetivos que almeja, a partir do momento que ignora as barreiras entre o Bem e o Mal, passa a relativizar os valores, destrói a alienação.
            Independente da narrativa construída em Deus e o Diabo ou de uma intencionalidade de expressar o pensamento existencialista, Glauber sempre teve um jeito característico para produzir seus filmes; vem desta inventividade a definição de “gênio” dada por muitos críticos e diretores. Ao finalizar O dragão da maldade contra o santo guerreiro, seu primeiro longa colorido, sentenciou: “É como se estivesse terminando o primeiro. Continuo experimentando, sem dinheiro no bolso, com medo do público e da crítica, com vontade de mudar de profissão. Mas o cinema é uma doença possessiva.” (Coleção Istoé Cinema Brasileiro (1), 1998:14) Na verdade, Glauber foi mais importante que os seus filmes, pelo que ele representou enquanto agitador cultural e provocador. Sua proposta sempre foi inovar, revolucionar as técnicas cinematográficas; apesar disso, ele não questionava que Deus e o Diabo era uma produção com influências externas – Glauber sempre afirmou a inspiração nos westerns de John Ford -, mas já definia Terra em transe como “um filme individual”, sem referências abertas e sem qualquer macaqueamento” (Coleção Istoé Cinema Brasileiro (1), 1998:14). Essa procura por um estilo próprio (livre de qualquer intenção existencialista), uma procura por algo que diferencie seus filmes e produções, por um cinema regional, demonstra bem esta intenção: graças ao “sobre o interior”, “sobre as lendas”, “sobre a religiosidade e o sofrimento do nordestino”, fruto da infância em Vitória da Conquista, Glauber se apresentou sempre como um conhecedor de nossas tradições culturais, as quais ele sempre soube refletir muito bem nas telas.

O autor Vinicius Reis G. Xavier é especialista em Comunicação e Imagem pela PUC-Rio

Notas
* Este trabalho é uma versão das conclusões da monografia Um existencialista no Sertão, orientada pela Profª. Angeluccia Habert e apresentada ao curso de Especialização lato sensu em Comunicação e Imagem, Departamento de Comunicação Social da PUC-Rio, agosto de 2001.
1. Revista Veja, 28 de abril de 1999, página 156.
2. Mãos Sujas é, inclusive, o título de uma peça de Sartre (Les Mains Sales) de 1948.
3. Rosa também vai esboçar tais contradições através da sua relação com Sebastião e com Corisco: após ela matar o primeiro – aquele que seria o representante do Bem, de Deus –, ama o “Diabo Louro”.
4. É curioso se verificar que Antônio foi o personagem que adquiriu mais popularidade, apesar de não estar inserido na versão original do roteiro.
5. Tal capacidade de refletir uma estrutura e/ou projeto de mudança social, é por demais exaltada por Bernardet (1978), que vê Antônio das Mortes como o mais puro representante das classes médias brasileiras.
6. Incluindo aqui os preceitos religiosos.

terça-feira, 22 de março de 2011

TRANSFERÊNCIA OU EXTENSÃO?

O psicoterapeuta tende a atribuir os sentimentos do paciente às suas vivências desde a infância, seus contatos interpessoais ao longo da vida, transferindo vivências inadequadas e frustrantes para todas as suas relações com outras pessoas, incluindo a atualidade do seu contato com pai e mãe. E também, em vez de focar no conflito com a mãe estende esse sentimento para todas as demais mulheres que encontra. Tornou-se vítima da transferência que é a transmissão de sentimentos de uma pessoa para outra.
Independentemente desta evidência, a pergunta justifica-se para comprovar a verdade dos argumentos teóricos que servem de base ao conceito de transferência. De fato, até mesmo um conceito que resulte satisfatório na prática, pode ser baseado em erro. Para comprovar esta teoria, partamos do seguinte exemplo:
Durante a infância, um paciente começa a odiar a sua mãe, porque ela jamais lhe dava a menor liberdade. Agora, odeia a todas as mulheres. A linha de raciocínio é a seguinte: o paciente transfere (na verdade estende) para outras mulheres o ódio que sente pela mãe. Esta estrutura de pensamento pressupõe que um afeto, ou seja, o ódio, possa ser desligado do seu objeto. Deve existir então alguma coisa que se possa chamar “ódio sem objetivo”. Todavia ninguém jamais sentiu algo parecido com “um ódio sem objetivo”. Ninguém pode dizer que sentiu, alguma vez, ódio não dirigido contra alguma pessoa ou coisa. Quando se odeia, odeia-se algo ou alguém. Até mesmo o chamado “ódio cego” é dirigido – cegamente – a alguma coisa ou a todas as coisas. O amor sem alvo é também desconhecido. Esta interpretação destrói a interpretação da transferência que é aparentemente simples.
Sem dúvida, prossegue Van Den Berg, deve existir alguma coisa chamada “transferência”; a evidência é convincente demais para ser negada. Mas o “mecanismo” sugerido pela palavra pode não ser correto. Quem tiver dúvida a respeito deve se colocar no lugar da pessoa que sofre de transferência. Quem odeia sua própria mãe sente que o seu ódio está profundamente ligado, entrelaçado, com sua mãe. É impossível separar o ódio da pessoa dessa mãe, que é objeto desse ódio. Ambos formam uma só coisa. De fato o conceito de transferência na forma como é aplicado na psicologia surgiu de uma cadeia errada de raciocínio. A causa pode ser encontrada no fato de que se tornou costume tratar qualidades mentais como se fossem objetos. Dizer que um afeto é transferido de uma pessoa para outra, é a mesma coisa que observar o transporte de um cinzeiro da mesa para a escrivaninha. Isto está muito certo quando se trata de coisas. Todavia, segundo Van Den Berg, os afetos não são coisas, não podem ser levantados de um lugar para serem colocados em outro. Nesse contexto, as palavras “levantados” e “colocados” não têm sentido. Tampouco tem sentido a palavra “transferência”, cujo conceito pertence à ciência física. (Nota: Para Van Den Berg, se a expressão “transferência” deve fazer sentido em psicologia – e demorada experiência depõe em seu favor - deve ser psicologicamente definida. E para ela não se havia ainda apresentado uma definição que fosse satisfatória). 
A partir dessas considerações, compreendemos que aquilo que a psicanálise indevidamente chama de transferência poderia ser chamado de EXTENSÃO. O processo de nutrir sentimentos indevidos, frutos de uma generalização, é real e adequado. O que nos parece inadequado, e nisto concordamos com Van Den Berg, é o termo transferência, pois se os sentimentos que nutro pelo meu pai ou irmão forem de fato transferidos para o meu terapeuta,  eles não poderiam permanecer presentes na minha relação com meu irmão ou com meu pai. Ora, se transfiro algo do lugar "A" para o lugar "B", este algo não mais poderia ser encontrado em "A", senão não há transferência. Por isso o autor tem razão quando diz que podemos transferir objetos de um lugar para outro, mas não sentimentos. Todo sentimento que nasce em uma relação é por excelência um sentimento novo que não pode ser importado, transportado ou transferido de um outro lugar anterior a este.
É neste sentido que este processo psicológico que consideramos real e existente deve ser chamado de EXTENSÃO, já que na verdade "estendemos" (prolongamos, alongamos) um  sentimento proveniente de outro lugar, fazendo ocorrer um desdobramento; mas tal sentimento não deixa de se fazer presente em seu local de origem. É como um elástico ou algo que se estica de um lugar até outro, criando abrangência, e não transferência.
Do mesmo modo, entendemos que o conceito de contratransferência seria melhor definido como contraextensão, já que os sentimentos do terapeuta ou do analista que se originam em outro lugar de suas relações, mesmo sendo revivenciados com um cliente, não deixam de estar vivamente presentes em seu local de origem. Entretanto, como uma contraextensão isto é perfeitamente possível.

sexta-feira, 11 de março de 2011

FENOMENOLOGIA E ETC - Nichan Dichtchekenian


A Fenomenologia aponta para a necessidade de se estar permanentemente voltado para o homem como tal e de a Epistemologia ser uma expressão do contato do pesquisador com o homem. Sendo assim, a noção de Ciência muda um pouco. Há, nos últimos anos, uma noção de Ciência uniformizada demais. Confunde-se fazer Ciência com um certo número de procedimentos padronizados. A metodologia consagrada e conhecida dentro das ciências é adequada ao homem em muitos aspectos, mas uma metodologia que diga respeito ao homem (ele mesmo) pode não coincidir com essa noção de que Ciência seja um conjunto de procedimentos padronizado.
A Fenomenologia propõe que pensemos a Ciência em outros moldes, como um procedimento rigoroso e não padronizado, e o rigor diz respeito a uma busca de aproximação entre o procedimento e aquilo que se está pesquisando.
O rigor que a Fenomenologia pede e propõe, como o modo científico do saber, não consiste no abandono do padronizado, do familiar, do confortável, mas na percepção do sentido fundamental que se anuncia no fenômeno. O rigor, portanto, é o enfrentamento do sentido de ser, a partir e além do familiar.
 A FENOMENOLOGIA E A RELAÇÃO HOMEM-SOCIEDADE
Dentro do olhar fenomenológico, o social é uma dimensão originária e fundante do homem. O social não é uma dimensão posterior à constituição do homem como tal, é o momento originário da constituição do homem como homem. Sob o ponto de vista fenomenológico, a estrutura existencial significativa que expressa essa dimensão fundante e constituinte do homem que identificamos como o social é a dimensão do humano enquanto ser com o outro.
Ser com o outro indica primordialmente, uma sensibilidade natural do homem para com o outro que lhe é diferente. Essa sensibilidade coloca o homem, desde o início da sua presença, diante da questão do outro como irredutível a ele mesmo. O outro já lhe é dado como um acontecimento.
Desde o começo de sua presença, porque o outro já lhe é dado como um acontecimento, o homem se encontra frente à questão da relação, que quer dizer impossibilidade de reduzir um termo pelo outro. Por mais que haja movimentos que busquem absorver um termo pelo outro, cada um dos termos se mantém diferenciado do outro.
Então, o social é uma dimensão da existência que é absolutamente inalienável de nós. O social não é da ordem da preocupação ou da despreocupação, do interessante ou do desinteressante. O social está presente em todos os instantes de nossa existência, porque a existência do outro é uma referência permanente até para as minhas questões mais íntimas.
A materialidade da realidade diz respeito à estrutura de valores que orientam e privilegiam os modos de relação, o social, porque relação já quer dizer social. A palavra relação, para a Fenomenologia, só subsiste quando há uma referência clara ao social como tal. Assim, a materialidade estudada permite compreender o modo de ser dos indivíduos.
Além disso, fenomenologicamente, como os indivíduos e grupos articulam os valores sociais herdados e presentes, com suas demandas de relação social? Aí, as referências sociais são: preocupação com os aspectos éticos e de realização de um grupo humano ao qual pertencemos, e que, de algum modo, nos tocam ou nos dizem respeito.
O social não é algo que eu escolho. É preciso levá-lo em conta como uma dimensão absolutamente essencial na constituição da existência das pessoas sejam elas grupos ou indivíduos.
A ESSÊNCIA DO INDIVÍDUO: O HOMEM, O MUNDO E ELE MESMO.
Essência é a sensibilidade que homem tem para responder, de algum modo, ao que lhe vem ao encontro, do social, do mundo e de si mesmo. A essência do homem é sensibilidade para. Isto quer dizer que o que caracteriza o homem como tal, não é nada a não ser sensibilidade para. A essência não é conteúdo. O homem não tem conteúdos, ele acolhe, elabora ou rejeita conteúdos, até faz os outros receberem seus conteúdos, mas o que o caracteriza essencialmente é a sensibilidade para lidar com os conteúdos que lhe vêm ao encontro. Com alguns deles vamos nos familiarizar, nos identificar, muito mais como um movimento de apaziguamento da nossa angústia do que como uma identificação definitiva, porque sabemos que a nossa essência é disponibilidade para.
Mas disponibilidade para o quê? Disponibilidade para ser o espaço onde o sentido de tudo pode se mostrar. O homem é aquele cuja essência é disponibilidade para o sentido de todo o resto poder se mostrar, e é só com o homem como presença que o sentido se mostra. O homem, portanto, é escravo do sentido do mundo, ele está a serviço disto, que é a única coisa que nos resta fazer de específico.
Enquanto o homem vive referido ao mundo apenas no modo de ser da ocupação, ele só se reconhece como aquele que tem esta ou aquela tarefa. Se o estar referido ao mundo diz respeito a algo diferente da ocupação, algo diferente da distração, algo diferente de ter que dar conta do que lhe vem de imediato,se estar referido ao mundo é diferente disto, o homem pode então se reconhecer como aquele que vive a angústia de ter que dar conta de algo que nunca se revela definitivamente.
A noção de essência, durante muito tempo na nossa civilização, foi coincidente com a noção de substância. Mas a palavra essência quer dizer: qual é o modo próprio disto? Porque essência vem de essere, que quer dizer ser, um verbo, e substância é somente um modo substantivo de se compreender essência.
A essência do homem é tal que se mostra de maneira verdadeira e absoluta, mas não definitiva, em cada momento de sua existência. Cada ato meu é absolutamente meu, e isso nos leva à questão do olhar fenomenológico, que é um aprofundamento daquilo que se mostra como se mostra.
Olhar para o profundo é se aprofundar no sentido próprio do que se mostra. O raso não é da coisa, porque ela se mostra como é na sua inteireza. É o nosso olhar que pode ser mais raso ou mais profundo. O olhar profundo é compreender o sentido do que se mostra.
Muitas vezes se confunde esse olhar com eu fazer, metodologicamente, uma enumeração do que vejo ou cair no relativismo. Eu diria que fazer, por exemplo, uma enumeração da frequência do comportamento é possível e diz respeito ao homem, mas diz respeito à dimensão do homem considerado como um sistema previsível, que o homem é também. Ao fazer contagem de frequência de comportamento, estou alcançando o homem na sua dimensão de entidade determinável.
O homem é, nesse aspecto, aquele que, em cada instante da sua vida, vive de uma maneira absolutamente real o que lhe é determinado e que de alguma forma tem que lidar com isso. Como? Ultrapassando a determinação? Não necessariamente. Se pensarmos na questão da Psicologia Hospitalar, na morte, na doença, temos que ultrapassar a doença que é uma dimensão nossa? Talvez ultrapassar a determinação seja, muitas vezes, acolher a minha finitude nessa existência.
FENOMENOLOGIA, DOENÇA E CORPOREIDADE.
Não há maneira mais indubitável de dizermos algo a nosso respeito do que a nossa corporeidade. Na dimensão da doença, sua imagem é a morte, com toda a força que uma imagem tem. Muito mais do que uma metáfora, a doença não é como a morte, a doença é a morte. A doença não é uma metáfora da morte, ela é a presença da morte.
Isso é vivido por nós como imagem, é a nossa finitude de presença e possibilidades.
Clinicamente, a Fenomenologia não busca estimular, no contexto hospitalar, um movimento de superação da questão da doença. Busca escutar e estimular, no doente, um esforço de compreensão e resolução de sua existência a partir da doença. Essa seria a visão e a contribuição, no contexto clínico, da Fenomenologia. É acolher a doença como algo que me diz respeito, não só porque ela me acometeu, mas porque fala de mim, para mim e, a partir disto, eu vou obter novamente uma oportunidade de me colocar resolutamente em relação à minha pessoa. O que é que eu vim fazer aqui com os outros? Essa é a resolução da existência a partir da doença.
Há outro aspecto importante. A doença é também, neste contexto, uma expressão de sanidade. A doença é a expressão não só do impedimento de eu continuar sendo, mas principalmente um impedimento de eu continuar sendo como sempre fui. Ela não é apenas uma ameaça, talvez seja um convite para que se reconsidere as direções que se tem tomado na vida. É uma palavra surda, muda, mas tão intensa que não precisa dizer nada. Ela é a nossa relação conosco mesmos e faz com que nos voltemos para a nossa relação com a vida.
A doença não vem me propor algo. Eu me transformo nesse impedido. É muito radical, é a nossa palavra definitiva para nós mesmos.
Quando nos tornamos doentes, passa a haver um intercâmbio mais enriquecido entre as nossas possibilidades como homem e aquilo que realizamos na instantaneidade de nossa vida.
 FENOMENOLOGIA E DESENVOLVIMENTO HUMANO
Desenvolvimento supõe duas dimensões simultaneamente presentes em nós: a primeira é envolvimento, que é ser de um modo, eu sou deste modo; a outra dimensão é desligamento, viver, experimentar, ser um novo modo de ser.
Desenvolvimento humano é aprofundamento (envolvimento) e ampliação (desligamento) das questões existenciais de cada um. Portanto, para a Fenomenologia, desenvolvimento não quer dizer progresso, desenvolver-se não quer dizer ficar melhor, quer dizer aprofundar-se no modo próprio de ser e conseguir perceber as cruzes e as glórias deste modo de ser.
O outro modo de desenvolvimento humano é amadurecimento e superação de possibilidades existenciais. Com a percepção de que há um movimento de incorporação e transformação no desenvolvimento, o significado de desenvolvimento não pode ser confudido com progresso, melhoria das minhas possibilidades.
FENOMENOLOGIA E DASEIN-ANÁLISE
A palavra chave para essa questão é preocupação, como forma privilegiada do analista na relação de ser com o outro, o analisando.
Nosso trabalho como analistas é amadurecer em nós um modo de ser como pessoas, que tem como qualidade fundamental poder escutar verdadeiramente o outro e poder, nessa escuta, efetivamente estar com o outro, lembrando que cada um de nós tem as referências fundamentais da existência.
As referências fundamentais da existência são: ser e não ser, angústia e culpabilidade, ser no mundo, temporalidade e historicidade, e ainda a transcendência. A Fenomenologia busca iluminar o modo próprio de cada um poder ser e existir como humano, levando em conta essas reflexões.
Angústia quer dizer: sou eu, e somente eu, que vou ter que dar conta de mim mesmo, ninguém mais. Se alguém der conta de mim, o inferno se mostrará na sua expressão máxima.
Culpa ou culpabilidade não é sentimento de culpa. Eu sou aquele que tem que dar conta daquilo que me toca e, se me toca, eu vou responder. Culpabilidade é, portanto, o quanto eu fico em dívida com a minha sensibilidade para com o que se mostra. Culpa, ou culpabilidade, não é ter que dar respostas certas. É o sentimento de não estar dando respostas próprias, de não viver o que é o meu modo de responder.
Temporalidade e historicidade são outras referências. Temporalidade quer dizer o quanto eu consigo estar aqui presente, levando em conta dois aspectos simultaneamente: a finitude e a presença. Eu sou mortal e, portanto, quem eu sou agora é insuperável. Minha presença responde como companheira de minha finitude, conjuga-se com ela. Temporalidade nos remete à existência como ruptura, descontinuidade. Finitude e presença são ecos significativos da natureza instantânea de nossa existência. O instante é o convite irrecusável do meu existir como abertura para o novo e para a não retenção absoluta do já vivido.
Historicidade é a dimensão que revela como eu me aproprio da multiplicidade de instantes a que estou, necessariamente, submetido. É o caminho existencial que eu desenho cujo rosto identificável só se mostra no momento da angústia.
Transcendência é o modo como eu vivo de uma maneira significativa este instante que é tão concreto e direto em mim, isto é, que tipo de simbolização efetiva eu vivo dos instantes de agora. Transcendência é conseguir articular o infinito dos significados com os instantes aos quais nós estamos condenados. Nós não saímos nem dos instantes, nem da possibilidade de ultrapassá-los, através da significação. Transcendência é, portanto, um aprofundamento de sentido do vivido na simplicidade do instante.
A escuta dasein-analítica é uma maneira de você estar com o outro em que você escuta esse outro de uma maneira absolutamente verdadeira, voltada para o modo como ele dá conta destas dimensões. Cada um de nós, em cada ato, está dando conta dessas dimensões, está respondendo a elas. Trata-se de acompanhar como a pessoa está acolhendo estas determinações. Ela as aceita ou as rejeita? Ela realiza algum movimento em que a articulação, pertencimento e autonomia estão presentes? Estas são as faces, os modos de articular essas dimensões que nos caracterizam.
Sugiro, como olhar fenomenológico, que prestemos atenção aos simples e medíocres instantes em que somos. Eu nada serei se não pertencer a algo, e nada serei se não viver o eu mesmo. Como lidar com isso? Sendo eu mesmo no interior da familiaridade, eu mesmo no interior do já eternamente dado. Como é isto? Isto não pode ter uma resposta antecipada. É uma questão que vem ao nosso encontro e na análise vamos acompanhar o movimento de cada um e, ao fazê-lo de uma maneira íntima e próxima, estaremos oferecendo ao analisando a possibilidade dele, assegurado de si a partir do já vivido, poder se lançar, na maior proximidade possível de si mesmo, para um instante original e próprio.
Compreender o homem é compreender cada um como uma expressão absolutamente original, irrepetível, de ser homem. Essa compreensão é necessária, mas não é suficiente. Além dela, é necessário acompanhar a particularidade histórica, factual da existência de cada um de nós. Porque no interior desta facticidade é que está sendo realizada a existência de cada um.
Na escuta dasein-analítica, não se trata de levar a pessoa a grandes significações gerais a respeito do homem, mas de viver significações no interior da simplicidade e factualidade da sua vida. A compreensão é um movimento absolutamente necessário para o nosso trabalho e é, no interior da existência concreta e simples de cada um, que ela vai poder ter uma repercussão, uma ressonância com consistência.
FENOMENOLOGIA- EXISTENCIAL E TEMPO DA SESSÃO. O AMOR COMO METÁFORA.
Capte a seguinte imagem: "eu amo tanto você que viveria eternamente ao seu lado". Isto é uma imagem, uma mentira factual, absoluta impossibilidade. O amor não é dissolução de si mesmo, ele é a promoção de si mesmo com o outro.
Se o analista vive um “amor” pelo seu analisando, e amor aqui quer dizer disponibilidade para aprofundar-se com o analisando naquilo que ele busca, ele é um companheiro do analisando nessa busca.
Assim, há um tempo de cinquenta minutos, uma hora, uma hora e meia, duas horas, não importa, mas o tempo de encontro está dizendo que a minha disponibilidade é eterna com você enquanto estou com você, Eu tenho outras urgências como pessoa e estas têm sua devida importância, mas não substitui a importância do que vivo com você. Eu “amo” você, com certeza, de modo que é o amor-disponibilidade que quer encantar-se com o seu jeito de ser. Amar é isso, encantar-se com a forma singular do outro ser.
O amor não é apenas um sentimento que me abre para o absolutamente original do outro, mas faz o outro descobrir o divino que ele é. Quem ama faz o outro perceber algo que ele nunca tinha percebido nele. É uma doação magnífica. E a nossa relação é mantida, sustentada por esse tipo de presença, um para o outro.
A natureza de nossa presença é uma proposta de relação que o outro vai responder como der, puder, quiser. O tempo é uma expressão claríssima da nossa existência uns com os outros: tanto o meu amor por você está presente, como este amor não é a única dimensão com a qual eu sou na vida.
E eu diria que esta expressão do amor na relação do trabalho analítico não é uma particularidade restritiva do amar, é o amar na busca de sua maior purificação. Os nossos outros modos de amar uns aos outros é que ainda podem se confundir com necessidades. Não estou dizendo que no amar não há necessidades, mas não se resume a isto. O amar tem a simplicidade da graça, é de graça, amar é promover.
Então, na sessão impera, além do tempo, disponibilidade e encantamento que quer dizer interesse genuíno no projeto do outro, em suas buscas e no outro como ele singularmente é.
A metáfora do amor é pertinente, já que ao amar e estar com quem se ama o tempo perde sua força cronológica e assume uma força ilógica que tem sua potência na intensidade do tempo e não na sua extensão cronológica.
Organizar cada atendimento com 50 minutos ou outro número, é importante senão a gente se perde, mas o fundamental é que seja um tempo de real disponibilidade e encantamento.
 FENOMENOLOGIA-EXISTENCIAL E NOSOGRAFIA
Se todos os homens são modos de ser, há uma possibilidade de estabelecer uma fronteira entre sanidade e doença? Se todos os modos de ser do homem são legítimos, e disto a Fenomenologia não abre mão jamais, como é possível estabelecer uma fronteira entre sanidade e doença? Se todos os homens são modos de ser, a Fenomenologia está considerando a doença como expressão direta da condição existencial. Mais do que distinguir a doença da não-doença, aproxima a doença da existência. Doença não é negação da existência, é uma possibilidade da existência.
Não se trata de estabelecer uma nova classificação nosológica. Trata-se de compreender o nosológico.
O único nosológico fundamental de todos nós é a esquizofrenia. O resto são variações. A esquizofrenia é a expressão direta da condição humana. Não é negação, é expressão. Compreendemos esquizofrenia como uma luta sem pele, em carne viva, entre ser e não ser. Viver a esquizofrenia é uma escolha em nós? Com certeza, não. Ela vem ao nosso encontro quando algo que é tão simples e tão fundamental nos falta. O que faltaria a nós e que poderia fundamentar o nosso modo de ser esquizofrênico? Faltaria o outro. Como acontece? Quando aquelas pessoas que lhe dizem respeito em diferentes momentos da vida – podem ser os pais num certo momento, mas não necessariamente o são – estas pessoas não sabem o que fazer com a criança que veio. Têm simultaneamente, no mesmo gesto, rejeição e acolhimento, ódio e amor. O problema do esquizofrênico, que é o nosso problema como homens, não é viver ser o rejeitado. Na vivência esquizofrênica eu cheguei e ninguém efetivamente me percebeu nem me acolheu como eu sou. Não pude ter oportunidade de ocupar um lugar nesse mundo.
Na esquizofrenia eu vivo a angústia carnal de jamais saber quem eu sou e qual é o meu lugar no mundo. Mesmo que seja o dos malditos, eu, sendo maldito, ainda tenho um lugar. Mas a esquizofrenia é a absoluta incerteza. A vivência esquizofrênica é a plena explosão da angústia de ter que ser sem poder ser. Todos nós vivemos grandes mentiras afetivas na nossa vida, mas a estrutura de história da relação de todos nós aqui não é a esquizofrenogênica, não tem esse modo no qual a ambivalência é o que predomina na relação.
É necessário compreender a esquizofrenia como uma possibilidade dos homens, de todos nós, em relação à qual o que estamos vivendo enquanto doença é, simultaneamente, um chamado às nossas possibilidades e uma limitação da nossa existência, um incômodo de continuar sendo como sou. Por exemplo, o modo obsessivo-compulsivo de ser pode ser considerado um aspecto nosológico? Pode, mas ao mesmo tempo pode ser visto como o único modo que aquela pessoa encontrou de incluir a ordem na absoluta vitalidade da vida. O obsessivo-compulsivo vive, com a maior intensidade possível, a explosão da vida. Por isso ele é tão certinho: se ele relaxar um instante, ele se desorganiza.
O obsessivo-compulsivo é aquele que lida com a questão da organização de um lado, e a explosão de outro, como dois aspectos que ainda não puderam entrar em harmonia. Ele só pode lidar com isso de uma maneira antecipadamente preventiva, para tentar conter a vitalidade da sua existência.
FENOMENOLOGIA, TRANSFERÊNCIA, CONVERSÃO E PROJEÇÃO 
A Fenomenologia não considera os conceitos psicanalíticos como contestáveis. Afirma, aliás: a conceituação psicanalítica é absolutamente fidedigna ao que o homem vive. Não se trata, portanto, de contrapor à conceituação psicanalítica um outro conjunto de conceeitos que abarcaria melhor o que vive o homem. Os conceitos psicanalíticos como transferência, conversão e projeção são expressões, cada um deles, de dimensões existenciais.
A transferência, num olhar fenomenológico, é o modo pelo qual eu vivo a relação ser-com-o-outro. Ele é verdadeira? Com certeza. Chama-se transferência porque é mais uma ocasião de eu viver a minha concretude como pessoa para alguém. Eu quero ser real para alguém, e eu vivo isso no meu modo próprio de ser, que não é aquele ajustado, já confortavelmente instalado nas demandas sociais. São os meus problemas, as minhas faltas, os meus ódios, as minhas raivas, as minhas tristezas e as minhas saudades. Eu vivo o meu modo próprio de ser na especificidade desses sentimentos.
Então, transferência não é uma demanda equivocada, é um "pelo amor de Deus, olhe para mim". Nesse sentido, a transferência é um conceito que nasceu na Psicanálise e que tem a sutileza de perceber a importância, no contexto do trabalho, da relação transferencial. Porque já não se trata mais de um cliente, mas de você, que está aqui comigo como você mesmo.
A resposta do analista para a demanda que o analisando leva até ele não é corresponder como complemento, é compreender a legitimidade da sua demanda. Essa é a articulação que a Fenomenologia e a Psicanálise podem ter: a legitimidade da identificação do conceito e uma compreensão deste conceito como uma modalidade de realização da dimensão existencial.
Assim também a conversão para a corporeidade, para aquilo que se chama de sintoma. O que é isso, sob o ponto de vista fenomenológico-existencial? É a objetivação, no seu sentido mais puro, porque não há nada mais próximo e mais distante de mim do que o meu corpo. Ele fala sendo, ele não dialoga comigo, ele não responde a mim. Quando sou de um modo, ele expressa esse meu poder ser, meu modo de ser, do modo próprio dele.
Conversão diz respeito, para a Fenomenologia, a uma objetivação da nossa existência. O grau de complexidade de uma conversão equivale a eu poder falar com uma montanha. É difícil, eu preciso entrar no espírito da montanha, do corpo, do fígado, das pernas. Não é fazer grandes aprofundamentos, é compreender aquilo que se mostra: estou doente das pernas, não consigo andar. Quero andar e não consigo. O que o andar mostra diretamente? Andar é abandonar. Mas o que é o abandonar, o tchau, o adeus? É o ir, sair da eternidade do lugar e do instante. Para ter um olhar para isso é preciso olhar para o andar no sentido próprio dele.
Isso não é uma interpretação para além daquilo que o andar mostra. Existe uma briga entre Fenomenologia e não-Fenomenologia: "A Fenomenologia não interpreta." "Como não Quando você fala, isso não é uma interpretação?" Eu respondo: não, não é. Se interpretar é substituir uma coisa por outra, não é. Falar que o andar é abandono é falar do andar ele mesmo.
Falta agora a projeção. O que quer dizer a projeção, fenomenologicamente? Projeção é a expressão direta do que é meu e do qual eu ainda não tomei posse, mas que está amadurecendo em mim. Eu me vivo nos outros. É por isso que eu projeto algumas coisas e outras não, vivo a projeção de algumas coisas e de outras não. O amadurecimento de possibilidades minhas ainda não pôde ser vivido em mim como dizendo respeito a mim.
Como analista, eu convido o paciente a perceber em si aquilo que ele aponta em mim, ou aponta nos outros ou nas coisas. Para terminar, quero indicar a absoluta necessidade de parceria da Fenomenologia com a Psicologia.
A Fenomenologia compreende a Psicologia como uma ciência que precisa ter a existência como permanente referência, sem a qual ela se transforma num mero jogo de curiosidades conceituais.
A Fenomenologia convida a uma articulação aberta, expressa entre a dimensão essencial e a dimensão factual a todo o momento. Ela articula o ôntico e o ontológico, permanentemente presentes.
O ôntico é aquilo que se mostra como se mostra, numa certa forma. O ontológico é o sentido disto que se mostra. O ontológico está aqui, sempre está no ôntico. O ontológico não é uma outra realidade. É o sentido daquilo que se mostra.